Luiz Fernando Carvalho e a Estética da TV

por Helil Neves e Wanderley Anchieta,
da Turma 1.2011
Alunos da Matéria Televisão e Vídeo. Texto referente ao Conteúdo do Seminário sobre o trabalho do diretor de televisão Luiz Fernando Carvalho, realizado em 24/05/2011

As linguagens da TV, da Publicidade e do Cinema se cruzam e entrecruzam continuamente. Essa transversalidade – geralmente dada no embate - também funciona como estopim para a evolução das mesmas. O sentido aqui é denotativo: um processo gradual de transformações, visto que não há como medir qualidade. Não é possível dizer “esse é melhor ou pior”. Passando rapidamente pela história da estética se chega a Immanuel Kant, no século XVIII. Se antes era credo comum a beleza intrínseca ao objeto, Kant a clamará extrínseca. Dada na relação com sujeito (subjetividade/olho) e objeto. Em outras palavras, “a beleza está nos olhos de quem vê”. O cinema, em seu primórdio, era simples. Que se entenda desprovido, não menos ou menor. Desprovido de tecnologia e corpus teórico. Cheio de gás e inovações a serem desenvolvidas, entretanto. A TV cruzou o mesmo caminho tortuoso, 70 anos mais tarde. Outros fatores também influem na linguagem, como demonstra Bucci:

"[…] não é bem que a liderança da Globo se devesse ao seu autodenominado padrão de qualidade; era antes o contrário: o tal padrão é que só foi possível porque dispunha de condições prévias, o monopólio entre elas […] O que foi o ‘padrão Globo de qualidade’ senão a face da integração nacional sob a ditadura?" (BUCCI, 2002).

Os montantes portentosos de investimento que a emissora carioca dispunha possibilitaram a contratação de técnicos estrangeiros e equipamentos mais modernos. Mas era seu anseio de retratar um “país carioca” – e urbano e elitista - que acabou por debilitar a criação artística em seu cerne, impedindo uma amplitude que pudesse capturar as nuances de nossa cultura. O próprio crescimento exacerbado da emissora acabou por selar uma tradição: as das novelas sem profundidade.

Com a obrigação de construir sete novos capítulos por semana, impõe-se um ritmo acelerado à produção, debilitando sua criatividade. Em todos os níveis, tal “preguiça” pode ser constatada: no texto, que é enfadonho e maniqueísta; na edição, que se atém a agregar uma série infinita de planos e contra-planos; na maquiagem, que só aparece para esconder rugas; na fotografia, que se limita a iluminar tudo o máximo possível e movimentar-se em acanhadíssimos pans e tilts. Toda a evolução da linguagem cinematográfica atirada no lixo. Mas essa lógica funciona assim há décadas, dando IBOPE e repercussão.

Poucas novelas se passam fora do eixo Rio-São Paulo. Quando acontece, tudo o que se vê são caricaturas mal-feitas por atores cariocas filmadas em pleno Rio - no PROJAC - com eventuais inserções de tomadas aéreas das cidades de fato representadas. Na contramão desse processo, existe um pária: Luiz Fernando Carvalho. Carvalho levou a produção para o nordeste e buscou atores de lá pra fazer seu A Pedra do Reino. Filmou in loco. Conseguiu a construção – ainda que temporária - de um estúdio especial em forma de domo para Hoje é Dia de Maria. Seu texto é rebuscado e encontra na literatura nacional fonte de inspiração. A montagem é cheia de cortes rápidos com construção intelectual de sentido. A fotografia parece beber diretamente da fonte da pop art de Warhol (ou da publicidade moderna, que, pensando bem, se nutre do mesmo movimento). Ainda há em cena jogos com a metalinguagem e a teatralidade.

O diretor, que já dirigiu novelas - Tieta (1989); Pedra Sobre Pedra (1992); Irmãos Coragem (1995) e O Rei do Gado (1996), entre outras - e cinema (Lavoura Arcaica, 2001), hoje concentra-se na produção de microsséries dentro da Rede Globo. Detemo-nos agora na observação de seus valores propostos: ancestralidade e aproximação. Tema e método, bem compreendido. Fácil notar que esta não é uma abordagem nova nos meios audiovisuais brasileiros, embora seja mais fácil de suceder no cinema do que na televisão. O que queremos agora é fazer algumas comparações do trabalho televisivo de Luiz Fernando Carvalho com outras obras audiovisuais que abordariam, mesmo que por outros caminhos, esses dois conceitos por ele propostos. Tomemos o exemplo de Capitu. Uma adaptação machadiana, em que uma de suas preocupações era a de não simplesmente transpor o texto para a película, mas uma aproximação desse texto para um novo discurso, uma nova obra. Uma obra verdadeiramente autoral, e não um assassinato da letra.

Cena de Capitu (2008)

Compare-se a isso o Brás Cubas de Bressane. Não é exatamente isso? Comparado a este filme, o programa de televisão é até muito comportado, visto que ritualiza com todo o cuidado o texto de Machado de Assis, respeitando inclusive sua estrutura. A despeito de seu diálogo com Capitu no nome, o respeito com a obra original é muito forte. A autoria aí está não num rompimento com o livro, mas em uma criação que vai além do livro. Que dá continuidade mesmo ao que Machado bolou. Ele consegue isso por meio de uma encenação distante do realista, de um figurino que fica entre a época e a fantasia, e de uma construção de espaço que fica livre à imaginação do espectador construir.

Mesmo a lembrança de corporificar Bentinho autor em frente a suas lembranças não é tão nova. O mesmo se dá no Memórias Póstumas de Brás Cubas de Adré Klotzel, embora o resto do caminho de ambos os produtos seja totalmente diferentes. Além da interpretação de Michel Melamed não ter nada de semelhante à atuação de Reginaldo Faria. Mas falemos um pouco da ancestralidade. Trouxemos dois exemplos na cinematografia nacional que abordam esse valor, novamente, com outro desenvolvimento e abordagem.

Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade

Em Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, há uma inversão desse valor, na verdade. Uma vez que o Macunaíma busca uma identidade nacional, mas não possui ancestralidade brasileira alguma, uma vez que não possui nenhum caráter nacional - já que o personagem, por isso mesmo escolhido por Mario de Andrade, nem ao menos brasileiro é, mas venezuelano. É por meio desse reconhecimento de uma ausência de caráter que vai se formar a identidade do brasileiro, sem ancestralidade, porque sem memória.

O exemplo de Macunaíma é tão bom, que serve inclusive para a discussão do valor aproximação também. Pois o Macunaíma de Joaquim Pedro não tem nada de transposição do texto ao filme. Ele é de Joaquim Pedro e dele só. É fruto de 1968, e aborda as questões desse Brasil, e não do livro de Mario. Joaquim Pedro, por exemplo, faz questão de dissolver qualquer heroísmo do personagem, que é tosqueado até de sua qualidade de Imperador do Mato. Esses valores são esquecidos/deixados de lado pelo filme, que inclusive troca o chamado a aventura, da saudade para a cobiça. O Muiraquitã deixa de ser uma lembrança ou um presente perdido de Ci, para ser um objeto cobiçado por Macunaíma, que queria ter herdado, mas se viu logrado. Qualquer dúvida quanto a dissolução do heroísmo do personagem será sanada ao ver o final da fita. Macunaíma não chega nem a se fazer estrela. Simplesmente morre afogado, sangrando na água. O fim do personagem individualista do cineasta.


Voltemos à ancestralidade. Vamos falar um pouco a cerca de outro cineasta que lidou muito com isso também. José Mojica Marins, ao criar o Zé do Caixão, soube muito bem como mexer com seu público, ao questionar com suas certezas, suas crenças, sua formação. Seu próprio mito formação. Sua ancestralidade. Zé do Caixão não é uma mera xerox do monstro estrangeiro. Mojica mastiga o produto americano e cospe o que é nosso. Zé do Caixão, ao contrário do que o vulgo possa pensar, não é um personagem sobrenatural, mas um personagem materialista, ateu, e iconoclasta. Quando aparece, é para questionar a fé absurda do povo, e sacudi-lo mesmo, com violência e de forma direta. Isso é lidar com ancestralidade, mas de um modo provocativo. Tão provocativo que muitos nos anos 60 achavam que Mojica tinha parte com o cão.

Para finalizar, também podemos falar de seus programas de televisão nos anos 60: Além, muito Além do Além (na Bandeirantes), e O Estranho Mundo de Zé do Caixão (na Tupi). Ambos sucessos de audiência, embora o programa da Tupi tenha tido vida mais curta. O programa dramatizava histórias fantásticas, apresentadas por Zé do Caixão, e roteirizadas pelo Rubens Francisco Luchetti, embora dessem a entender que eram histórias que sorteavam de cartas que o próprio público mandaria. Na Bandeirantes a abordagem era realista, e contava com atores amadores; na Tupi, abordagem teatral, e com atores profissionais.

Essas histórias, como Luchetti também faria nas histórias em quadrinhos de terror do Zé do Caixão, narravam histórias reconhecíveis pelo público nacional, notadamente o povão, embasado em suas crenças e folclore. Se os outros autores (de quadrinhos) imitavam o castelo assombrado, a múmia, o lobisomem e o Frankenstein, Luchetti (nos quadrinhos, cinema e televisão), abordava o universo de favelas, escritórios e escolas. Havia, de fato, identificação do espectador com as tramas. Infelizmente, todo esse material está hoje perdido.

*Citação de BUCCI, Eugênio. O mau gosto e o desgosto. Folha de São Paulo in: Observatório da Imprensa. Disponível em http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/asp080520029.htm. Acesso em 15-05-11.

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