Obra aberta e Recepção Televisiva: Telenovela e estudo do caso América

por Alessandra Stropp, Daniel Nolasco, Julia Rothier e Tiago Rosas
da turma 2. 2011
Alunos da Matéria Televisão e Vídeo. Texto referente ao Conteúdo do Seminário Obra Aberta e Recepção Televisiva, realizado em 28/11/2011

Até que ponto o produto televisivo oferecido pelas emissoras, especialmente a telenovela, produto massivo no mercado brasileiro, pode ser influenciado pela recepção, e por isso considerado uma obra aberta, no sentido mais evidente do termo? Antes de tudo, qual é a diferenciação entre a obra aberta tal qual o termo comum e a concepção teórica de Umberto Eco? "Obra aberta", escrito por Umberto Eco sobre a poética da arte contemporânea, é uma coleção de ensaios que analisa a ambigüidade da mensagem estética e sua abertura para a iniciativa do leitor (que complementa seu sentido). Vale dizer que sua primeira edição data o ano de 1962, momento em que a arte européia assistia à proliferação de obras de arte indeterminadas com relação à forma, convidando o intérprete a participar ativamente na construção final do objeto artístico.

A grande novidade do livro está no discurso sobre a significação plurívoca, ou seja, um significante ter vários significados ao mesmo tempo. Mais que isso, diz que a obra de arte é uma interação com quem vê, ou seja, ela não existe em si, mas sim em contato com o leitor. A arte é viva e sua preocupação consiste em saber como a obra de arte por iluminar a história da cultura. Eco coloca a arte em fluxo, dizendo que o receptor ocupa um lugar privilegiado, já que a cada fruição o intérprete produz “uma interpretação e uma execução, pois em cada fruição a obra revive dentro de uma perspectiva original”.

A abertura para a convivência de vários significados em um significante seria um valor comum na construção artística, apesar de que somente na arte contemporânea ela tomou parte de um programa poético: os artistas não se colocam como vítimas da possibilidade de interpretações múltiplas, mas sim, passam a utilizar a possibilidade de abertura como caminho de construção artística por meio da criação de obras que pudessem oferecer o máximo de possibilidades de fruição.

Assim, segundo Umberto Eco, qualquer produção artística nunca está completamente acabada e definida, mas abre-se totalmente ao receptor, que deve extrair dela uma análise única e pessoal. A obra aberta opõe-se à imposição de barreiras limitativas, de ordem, de rigidez, abrindo-se à dialética com o intérprete, valorizando sua capacidade criativa e interpretativa, o que leva, necessariamente, à reestruturação do pensamento.

Há quem diga que é o telespectador quem dirige a trama, mas o fato é que não existe consenso quanto a isso. Para a autora Laura Graziela F. Fernandes, apesar da telenovela ser um gênero narrativo que se aproxima das "obras abertas", pela sua serialidade, por ser escrita, produzida e gravada quase ao mesmo tempo da sua exibição, permitindo modificações no roteiro e  contando com a participação do público durante o processo, ela não é uma obra aberta, pois no final das contas existe um esquema que se impõe que dita a dinâmica da produção. Para ela, a participação do público na tomada de decisões do desenlace da trama faz parte das estratégias de marketing e tem o objetivo de ganhar maior legitimidade cultural para o produto. As telenovelas podem ser entendidas como histórias dramatizadas a partir de um conjunto de narrativas que juntas reproduzem um modelo completo de ordem social.

O discurso aberto tem como primeiro significado a própria estrutura. Assim, a mensagem não se consuma jamais, permanece sempre como fonte de informações possíveis e responde de modo diverso a diversos tipos de sensibilidade e de cultura. O discurso aberto é um apelo a responsabilidade, a escolha individual. Já o discurso persuasivo tende a levar o público a decisões definitivas, fundamentadas em escolhas já programadas, de forma até mesmo manipuladora. Por isso, é importante tentar analisar a telenovela, nos moldes brasileiros, como um produto com um forte discurso persuasivo incutido, que apela para as emoções do espectador e o faz se envolver com a narrativa, fazendo-o entrar no circuito fortemente comercial do método brasileiro televisivo. Desse modo, constata-se a enorme carga persuasiva do produto brasileiro (novelas), que legitima acomercialidade do que é exibido ao público pela TV e condiciona o poder de mudança do espectador sobre a obra. Para mais além da discussão de obra aberta e discurso, bem como da influência do público nos caminhos das narrativas de telenovelas, é necessário discutir acerca da recepção.

Para se analisar a questão da recepção nas telenovelas, foi utilizado o viés encontrado no texto “Identificação e Aproveitamento de Conteúdos Sociais na Recepção de Telenovelas”, de Márcia Gomes, onde a autora entende este produto como criador de novas relações sociais. Para ela, a telenovela serve ao espectador para a construção da noção de si próprio e do meio social. Sendo assim, combinando os códigos de linguagem do gênero, as representações feitas pelo emissor e o meio social em que está inserido o receptor, é possível encontrar neste objeto um amplo horizonte de possibilidades de criação e construção.

A leitura das telenovelas parte, antes de tudo, da autonomia do público, ou seja, seu posicionamento ativo diante do produto cultural. Esse contato, por sua vez, se dá a longo prazo, na medida em que a narrativa se exibe paulatinamente para os telespectadores. Segundo a visão de Márcia Gomes, a leitura dada neste contato pode ser entendida como referencial, onde o leitor (telespectador) toma a si mesmo como referência (parâmetro) para entender, a partir de comparações, o que assiste nos programas; identificação, projeção e percepção da diferença. No caso das telenovelas, a identificação com as personagens geralmente funciona com modelos pessoais, individualizados a partir do tratamento aproximativo por singularidade, e modelos de posição, percebidos por atributos que dizem respeito à posição social definida pela profissão, idade, sexo. São esses últimos que nos interessam por permitirem elo entre a comunidade de referência e o produtor do papel representado.

As telenovelas podem funcionar ainda para alimentar um “reconhecimento de si”, ou seja, o texto serve para que o receptor possa narrar a si próprio; “oferecem parâmetros de comparação com relação a comportamentos, escala de valores, atitudes e hierarquias de prioridades com relação aos vários âmbitos da vida. Oferecem, ademais, um repertório de temas desde onde observar-se e avaliar o próprio desempenho social.” Nesse caso há um deslocamento da narrativa sobre o “outro” para sobre o “eu”. Logo, pode-se dizer que é fundamental para a compreensão da recepção deste gênero a noção de papel social, já que é através dele que os mecanismos de identificação irão funcionar. A partir disso, pode-se explorar a possibilidade de socialização gerada por tais produtos e seu alcance diante dos receptores. É preciso, no entanto, dimensionar a hierarquização de tais papéis dentro de cada produto, e relacioná-la com o público receptor. No caso das telenovelas brasileiras, alguns temas são nitidamente relevantes na maior parte das obras, como por exemplo, o ambiente familiar delimitado pela casa, a centralidade na figura feminina, a ênfase nas relações afetivas e de parentesco, dentre outros. Todos os costumes e aspectos morais desse universo são, portanto, a fonte de origem para as tramas que têm contato direto com o cotidiano familiar dos espectadores.

De acordo com Nora Mazzioti, co-autora do artigo Pesquisa sobre telenovelas latino-americanas, que trata do caráter audiovisual e do aspecto social das telenovelas e soap operas, com recorte no trabalho da America Latina,”[...] Os primeiros estudos sérios de telenovelas reconheceram que, ao mesmo tempo em que elas são ficção, são também fundamentais na estruturação da realidade de seus espectadores [...]”. Já segundo Jesús Martin-Barbero “O aspecto esbanjador e a emoção exagerada das telenovelas parecem representar a necessidade de se quebrar a rigidez da vida cotidiana, tão marcada pelo comercialismo e pelo anonimato”. Tudo isso indica o potencial construtivo da telenovela na opinião pública, e  de certo modo, o desejo de se enxergar na trama. Daí, de certo modo, a existência de um poder de recepção transformador; o público pode abandonar qualquer novela ou programa em favor de outros que espelhem melhor o que deseja ver, o que obriga as emissoras, de acordo com o seu intento comercial (muito importante epassível de ser destacado), em aprazer o público modificando tramas e reconstruindo-as em rumos mais aceitáveis.

Para estudar, após a diferenciação entre o conceito de obra aberta de Umberto Eco e a obra aberta tal qual é amplamente conhecida, a explicação do discurso persuasivo que é a telenovela brasileira e a compreensão da importância da recepção como fenômeno sociológico e, doravante, como importante ponto de destaque dentro do sistema de produção de novelas, opta-se por uma exemplificação. A novela global América, exibida em 2005, foi selecionada como ponto chave dessa discussão pela sua inicial “rejeição” e crescimento gradual de ibope, até o sucesso. No final da trama, a Rede Globo comemorava o êxito da telenovela, que sofreu modificações estruturais evidentes (incluindo a troca de par romântico dos protagonistas) e apresentava o arcabouço do que viria a se tornar a Globo Marcas Online, site de vendas de produtos da novela. América marca, sobretudo, uma queda evidente de audiência do horário nobre, fator citado por Ricardo Feltrin em um artigo publicado no site UOL. Essa queda, evidenciada a partir dos anos 2000, revela uma procura por outros meios midiáticos, como internet banda larga, canais por assinatura, dentre outros. Um quadro comparativo mostra a queda de audiência das telenovelas globais no horário nobre.


A novela América tem uma peculiaridade: a de amargar péssima audiência no seu início e se encerrar com números no ibope com mais de 60 pontos, fato incomum para a década passada e atual. O que se nota ao analisar a novela são as evidentes mudanças. Escrita por Glória Perez e dirigida por Jayme Monjardim, numa óbvia tentativa de repetir o sucesso dos dois da novela O Clone, desde o início apresentou problemas de aceitação com o público. Estruturada no modelo Janete Clair de teledramaturgia, começando no em seu primeiro capítulo com a infância dos personagens principais, Tião e Sol, vividos por Murilo Benício e Debora Secco, e o início do amor dos dois; envolvendo também o universo dos rodeios e dos imigrantes ilegais a trama apresentou rejeição pelo público desde o começo. Do casal principal que não combinava, dos motivos pelo qual Sol largava tudo para tentar sorte nos Estados Unidos, do ritmo e até os personagens periféricos, tudo desagradava o público.

América também foi uma novela pensada de forma sistemática para o merchandising de produtos que apareciam na tela (dois anos depois, em 2007, foi inaugurada a loja virtual da Globo Marcas, que vendia vários produtos que apareciam nas telenovelas). A técnica sempre foi utilizada pela Globo, mas nunca de forma tão sistemática e organizada. Desde os chapéus dos peões, até as pulseiras e santos que rodeavam a personagem Sol, tudo iria ser comercializado pela emissora. A recusa inicial do público acendeu a luz vermelha do alto escalão da Globo e as mudanças foram acontecendo de acordo com pesquisas de público. Entre as mais notórias, uma que deixou evidente a crise pela qual passava a novela foi a saída do diretor Jayme Monjardim, alegando diferenças criativas com Glória Perez. Nos bastidores os comentários seriam de que Glória estaria segurando a entrega dos capítulos da novela até a saída do diretor. Com Marcos Schechtman na direção, tudo muda na novela, da abertura ao tom mais leve e cômico, abandonando o ritmo mais arrastado de direção de Monjardim, até uma impensável troca de casal de protagonistas.

No cerne de tal narrativa, encontramos, a princípio, dois personagens que apresentam algumas similaridades em sua construção arquetípica. Ambos de origem humilde, sonhadores, idealistas e sobretudo, passionais. Sol (personagem vivida por Deborah Secco) e Tião (Murilo Benício) são teimosos, persistentes até demais, pondo objetivos acima das relações sociais e sobre qualquer consequência; ele sonha em ser campeão de rodeios e vencer o touro Bandido (uma premissa ridícula incluída na trama de forma bastante, digamos, maniqueísta); ela, por sua vez, imagina-se vencendo os ecos de sua pobreza na infância ganhando a vida nos EUA. O que talvez não tenha permitido a identificação do público com o casal foi o pouco equilíbrio relacional deles. Muito próximos para se complementarem e formarem uma equação adequada, eram senão espelho um do outro, um reflexo masculino e feminino para si mesmos. Foi necessária, então, a partir do baixo ibope, a reformulação de novas diretrizes de envolvimento romântico para Sol e Tião, que a este ponto, não poderiam ser alijados da condição de protagonistas absolutos. Visto isso, porque não soerguer coadjuvantes, neste caso a professora Simone (Gabriela Duarte) e o escritor americano Ed (Caco Ciocler) à pares românticos em potencial? Deste modo, a trama trouxe à baila dois novos personagens, que estabelecem-se como definitivos contrapostos dos não tão gratos protagonistas. Ambos (leia-se Simone e Ed) de estratos sociais mais altos, mais cultos, mais harmonizados, calmos. Eis a palavra que faltava na narrativa de Gloria Perez: equilíbrio. Há de se perceber que muito mais apetece ao público uma trama de amor que se constrói aos poucos, suficientemente maduro para sobreviver aos percalços da vida, e sobretudo, das vilanias e mau-caratismos dos antagonistas.


A tônica da mudança de aberturas pressupõe, logo ao início do programa, mudanças também em sua trama. É um método eficaz de convidar o público a dar uma nova chance à novela, que até então não agradara muito. Inicia-se a trama na voz de Milton Nascimento, ao som de “Orfãos do Paraíso”, em uma montagem pesarosa e bastante melodramática. A segunda abertura é similar à primeira, exceto pelo intéprete (velho conhecido de Glória Perez, o cantor Marcus Viana fizera participações em O Clone, grande sucesso da autora, em uma trama confusa que pecava por ser fabulosa demais) e pela colorização, mais alaranjada, solar, ainda ressaltando seu caráter dramático. A terceira e última abertura conta com uma interpretação de “Soy loco por tí america” de Ivete Sangalo (A música perde completamente o seu sentido de composição ao deslocar o foco do ouvinte  erroneamente para os EUA). Aqui a abertura tem uma montagem mais leve e dinâmica, acompanhando a saída de Jayme Monjardin como diretor de núcleo. Deste modo, vê-se cenários como Miami, Rio de Janeiro e personagens bastante felizes.



As mudanças feitas de acordo com a vontade do público fizeram com que o ibope da novela aumentasse se encerrando com uma tremenda polêmica, com a emissora sendo acusada de retrógrada e de ter feito censura - acusações estas vindo da autora da novela e de alguns atores. A polêmica em questão foi a censura do famoso beijo gay que não aconteceu entre dois personagens que chamaram atenção na reta final da novela. Segunda costa também nos bastidores o beijo teria sido gravado e censurado no momento de ir ao ar. Essa expectativa, do primeiro beijo gay na telenovela brasileira elevou o ibope a 62 pontos, e terminou com muitas criticas à emissora. A rede Globo, em sua defesa, alegou que achava que a sociedade brasileira ainda não estava preparada para essa cena em seu horário nobre, o que resultou em mais críticas, sendo acusada deautoritária e conservadora. Grande parte do sucesso desses personagens veio da polêmica que os mesmos causaram. A mais notória delas, antes do grande final, foi a de que o personagem Junior, vivido por Bruno Gagliasso, ficaria apaixonado ppor Tião, protagonista da novela. A rejeição por parte do público foi completa. Insinuaram-se algumas coisas, mas o público foi enfático em dizer: isso não. Outro desconforto causado para a autora Glória Perez foi que a maioria das pessoas envolvidas em dar veracidade as cenas de rodeio e o universo mais camponês da trama, ou seja, peões e vaqueiros de verdade, não viam com bons olhos esse personagem dentro desse universo.

E outra questão em levar em consideração é que a Globo trabalha em cima de pesquisa de público, mostra disso foram as diversas transformações pela qual passou a novela ao longo de seus capítulos. E foi através destas que a Globo resolveu corta o polêmico beijo do seu episódio final. Diante disso cria-se a pergunta: quem foi o órgão que censurou o beijo gay da novela das oito? A sociedade ou a emissora?

Martin-Barbero coloca no seu livro “Dos Meios as Mediações” uma crítica aos estudos de televisão e de outros meios midiáticos, em que interpreta as relações entre mídia e recepção como um movimento unilateral de cima para baixo, no qual as pessoas que dispõem dos meios, emissoras de TV e radio, jornais, inserem suas ideologias e valores nos indivíduos que consomem esses produtos. Além disso, coloca que há muita resistência e rejeição por parte da massa maior da população que consome esse meios, e que também há forte um movimento contrário no qual essa população é quem diz o que quer ver e que ideologia quer consumir desses mediadores. Diante disso, fica-se com a reflexão: até que ponto o expectador está sujeito as produtores da indústria cultural e qual é a medida do inverso dessa equação? Ao olhar a história vemos casos que um grupo detentor de poder conseguiu inserir sua ideologia dentro das massas populares, claro, afinal temos nas telenovelas um forte discurso persuasivo, mas talvez nos esqueçamos de analisar até que ponto essa mesma ideologia não foi também forjada por essas mesmas massas. Afinal, a recepção deseja ver-se na tela, ver sua representação com bem lhe aprouver. No final das contas, se um grupo tem os meios para fazer o seu discurso, ou outro tem o controle remoto para desligá-lo quando começa e escutar algo não concorda. É ilusão pensar que o cidadão comum não sabe utilizar a televisão.


Bibliografia

GOMES, Márcia M. Identificação e Aproveitamento de Conteúdos Sociais na Recepção de Telenovelas. Disponível em www.unisinos.br/revistas/index.php/fronteiras/article/.../fem.../454
GOMES, Márcia M. Programação Televisiva e Socialização. Disponível em www.compós.com.br
MAZZIOTTI, Nora e FREY-VOR, Gerlinde. Telenovela e Soap Opera. Disponível em
http://www.revistas.univerciencia.org/index.php/comeduc/article/viewFile/4299/4029
MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos meios as mediações – comunicação, cultura e hegemonia. Rio de
Janeiro: UFRJ Editora, 2009. 6ª edição.
ECO, Umberto. A obra Aberta (Opera Aperta). São Paulo: Perspectiva. Coleção Debates.
FERNANDES, Laura Graziela F. Artigo A Telenovela é obra aberta?.
http://www.apagina.pt/?aba=7&cat=106&doc=8548&mid=2

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