[publicado originalmente em Agência Brasil, por Alex Rodrigues. Fonte: Observatório da Imprensa]
“Temos medo do Brasil.” Foi com um desabafo inesperado que a romancista moçambicana Paulina Chiziane chamou a atenção do público do seminário “A Literatura Africana Contemporânea”, que integra a programação da 1ª Bienal do Livro e da Leitura, em Brasília (DF). Ela se referia aos efeitos da presença, em Moçambique, de igrejas e templos brasileiros e de produtos culturais como as telenovelas, que transmitem, na opinião dela, uma falsa imagem do país. “Para nós, moçambicanos, a imagem do Brasil é a de um país branco ou, no máximo, mestiço. O único negro brasileiro bem-sucedido que reconhecemos como tal é o Pelé. Nas telenovelas, que são as responsáveis por definir a imagem que temos do Brasil, só vemos negros como carregadores ou empregados domésticos. No topo [da representação social] estão os brancos. Esta é a imagem que o Brasil está vendendo ao mundo”, criticou a autora, destacando que essas representações contribuem para perpetuar as desigualdades raciais e sociais existentes em seu país.
foto da novela Passione (Globo, 2010): Protagonistas brancos.
(foto da novela Da Cor do Pecado (Globo, 2004):
A novela destacava a personagem Preta (Thaís Araújo)
como a primeira protagonista negra da emissora.
“De tanto ver nas novelas o branco mandando e o negro varrendo e carregando, o moçambicano passa a ver tal situação como aparentemente normal”, sustenta Paulina, apontando para a mesma organização social em seu país. A presença de igrejas brasileiras em território moçambicano também tem impactos negativos na cultura do país, na avaliação da escritora. “Quando uma ou várias igrejas chegam e nos dizem que nossa maneira de crer não é correta, que a melhor crença é a que elas trazem, isso significa destruir uma identidade cultural. Não há o respeito às crenças locais. Na cultura africana, um curandeiro é não apenas o médico tradicional, mas também o detentor de parte da história e da cultura popular”, destacou Paulina, criticando os governos dos dois países que permitem a intervenção dessas instituições.
“A sabedoria africana continua excluída”
Primeira mulher a publicar um livro em Moçambique, Paulina procura fugir de estereótipos em sua obra, principalmente, os que limitam a mulher ao papel de dependente, incapaz de pensar por si só, condicionada a apenas servir. “Gosto muito dos poetas de meu país, mas nunca encontrei na literatura que os homens escrevem o perfil de uma mulher inteira. É sempre a boca, as pernas, um único aspecto. Nunca a sabedoria infinita que provém das mulheres”, disse Paulina, lembrando que, até a colonização europeia, cabia às mulheres desempenhar a função narrativa e de transmitir o conhecimento.
“Antes do colonialismo, a arte e a literatura eram femininas. Cabia às mulheres contar as histórias e, assim, socializar as crianças. Com o sistema colonial e o emprego do sistema de educação imperial, os homens passam a aprender a escrever e a contar as histórias. Por isso mesmo, ainda hoje, em Moçambique, há poucas mulheres escritoras”, disse Paulina. “Mesmo independentes [a partir de 1975], passamos a escrever a partir da educação europeia que havíamos recebido, levando os estereótipos e preconceitos que nos foram transmitidos. A sabedoria africana propriamente dita, a que é conhecida pelas mulheres, continua excluída. Isso para não dizer que mais da metade da população moçambicana não fala português e poucos são os autores que escrevem em outras línguas moçambicanas”, disse Paulina.
Durante a bienal, foi relançado o livro Niketche, uma história de poligamia, de autoria da escritora moçambicana [edição: Lílian Beraldo].
[postado por Marina Moreira]
O que nos diz a sábia Paulina me faz lembrar do documentário "A Negação do Brasil" - que comenta, com detalhes, o papel do negro na televisão através dos anos. No filme, vemos desde "Otelo" sendo interpretado por um ator branco canhestramente pintado de negro até reações furiosas do público diante de casais inter-raciais nas novelas. Além disso, quase todos os atores (Milton Gonçalves, Ruth de Souza, Léa Garcia) destacam a dificuldade de encontrar personagens que não tenham o tema do preconceito ou da negritude como principal função dentro da narrativa. Nenhum médico é negro impunemente em uma novela - sempre haverá uma história de superação e preconceito para justificar a escolha fenotípica do ator.
ResponderExcluirBem fez nosso caro Jorge Furtado que, ao elencar Lázaro Ramos como protagonista, disse a ele: "Pensei num brasileiro comum. Neste país, há brancos, negros e mestiços. Poderia cair em qualquer um dos três. Não vou adaptar coisa nenhuma por conta da sua cor. Este filme é sobre um personagem e não sobre a condição social e histórica do Brasil.". Nem sempre a arte precisa mudar levantando bandeiras. Há sempre sutileza e criatividade. Devemos usá-las bem.
Concordo totalmente Bernardo! Acho que algumas vezes, quando a narrativa pedir que se trate específico da cultura negra, ótimo. Mas os produtores e autores deveriam seguir o exemplo de Jorge Furtado. Temos o homem comum como personagem, em um país multi-étnico, ele deve ser interpretado por amarelo, azul, roxo ou verde. É o primeiro passo para democratizarmos o imaginário.
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