Guzmán ataca TV e planeja fazer filme 'poético e político'


 Premiado documentarista chileno prevê fim da grade com atrações variadas e aposta  nos canais temáticos


Depois de fazer a trilogia sobre o golpe contra Allende, ele trabalha em filmes que tocam a exploração econômica


ELEONORA DE LUCENA

Publicado originariamente em Folha de São Paulo, Ilustrada
Sábado, 7 de julho de 2012, página E3


O atual modelo de TV que conhecemos vai acabar nos próximos dez anos. Os canais serão temáticos e a ascensão da classe média na América Latina vai derrubar o "lixo" da programação atual e seu "terrorismo audiovisual".
Quem faz as previsões é o premiado cineasta chileno Patricio Guzmán, diretor da trilogia "A Batalha do Chile". Para ele, a televisão "é uma grande exploradora das emoções mais baixas do ser humano, muito conservadora e cheia de tabus".
Ele compara a TV ao cigarro. "Assim como se descobriu que o tabaco provoca danos, será criado um novo conceito para medir o quanto a TV deforma as cabeças. É preciso fazer uma enorme reforma moral na TV para recuperar a ética cotidiana", diz.
O cineasta constata o aumento na sofisticação da classe média: "Ela viaja, se veste bem, frequenta restaurantes. Seus filhos frequentam os melhores colégios, falam inglês, fazem cursos universitários. E não há uma televisão para essa classe social. Há uma TV para a África. E não falo mal da África".
Guzmán, 70, também não vê sentido na existência de uma grade de programação que passa por programas de culinária ao noticiário. "É muito caro e ninguém vê. Os velhos veem. Então que se criem canais para velhos."
A saída, segundo ele, será a criação de canais temáticos --de música, ciência, história, culinária etc--, tendência já observada na Europa. "Na América Latina estamos 15 anos atrasados. No Chile, a TV é senhora. Mas virá abaixo, porque [a mudança] é um fenômeno mundial. Será preciso um novo arranjo econômico; tecnicamente estamos preparados", declara.
Guzmán está em São Paulo para ministrar um curso de documentário promovido pelo Instituto Vladimir Herzog no bojo de uma mostra sobre filmes políticos da América Latina. Na quinta (5), concedeu entrevista à Folha.

PRIMEIRO FILME
Seu "A Batalha do Chile" (1975-1979), sobre o golpe que derrubou Salvador Allende, já foi listado entre os dez melhores filmes políticos do mundo. "Tive sorte. O meu primeiro filme teve ressonância universal e isso ajudou a me manter até hoje", diz. Depois, fez vários outros documentários focando na realidade chilena.
"Nostalgia da Luz" (2010) é sua obra mais recente. Rodada no deserto do Atacama, traça paralelos entre astrônomos que vasculham o céu e mulheres que percorrem a região em busca de vestígios de corpos de assassinados pela ditadura.
Agora ele trabalha na elaboração de um documentário sobre o sul do Chile, sobre a água. "É uma paisagem maravilhosa, com milhares de ilhas e onde ninguém vive. Não vou fazer um filme diretamente político, mas metafórico. Chegarei à política por meio da poesia, como em 'Nostalgia da Luz'", conta.
Após se debruçar sobre o deserto e a água, Guzmán pensa em fechar sua nova trilogia dirigindo um filme sobre a cordilheira dos Andes e seus minerais. Assim, imagina, percorrerá facetas essenciais do seu país ligadas à exploração econômica.
"O Chile está dando de presente suas matérias-primas. O imposto que as transnacionais pagam é ridículo. Por isso é o paraíso do neoliberalismo. É grátis", ataca.

NOVA GERAÇÃO
 
Ameaçado de fuzilamento nos primeiros dias da ditadura de Pinochet, o cineasta está entusiasmado com o movimento estudantil chileno, que segue mexendo com o país. "Pela primeira vez desde o golpe há uma geração que não tem medo, que não vai deixar o governo tranquilo.".
E por que não filmar esse movimento ou tantos outros que eclodiram no mundo nos últimos meses? Guzmán responde: "Isso fica para os mais jovens. Prefiro fazer um filme global, universal. Há uma grande diferença entre reportagem e filme de criação. Quero fazer uma análise, uma reflexão poética e política".
Para isso, ele vai à labuta com apenas três pessoas: um ajudante de direção e produção, um câmera e um responsável pelo som. "O documentário é como música de câmara, um quarteto", define.
O diretor fez uma única obra de ficção ("Rosa dos Ventos", 1983). "É um filme ruim, fiz quando vivia uma depressão profunda." Voltar ao gênero, nem pensar.
"Não gosto da ficção, me entedia. Gosto de vê-la, não de construí-la. Ela é um quartel militar, com diretores, ajudantes, auxiliares", diz.
Qual é o bom documentário? "O que conta uma história poeticamente. Onde há espaço para a música. Documentário sem emoção não funciona", defende.

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