Narrativas digitais




Publicado originalmente em O Globo, Segundo Caderno
Quarta-feira, 22 de agosto de 2012, página 1

Como a arte de contar histórias vem sendo remodelada por novas tecnologias e os comportamentos que nascem delas

RIO - No ano do centenário do naufrágio do Titanic, o escritor e editor Claudio Soares decidiu pesquisar e recontar a história da tragédia. Mais uma volta ao mesmo tema, não fosse pelo fato de o autor ter escolhido fazer isso espalhando fragmentos — páginas de jornais da época, o áudio de músicas tocadas pela orquestra do navio — em 23 redes sociais (dos celebrados YouTube, Facebook e Twitter ao esquecido Orkut, passando pelos menos manjados Scribd e Pinterest). Em outro canto da web, a editora Intrínseca vem publicando diariamente, em sua conta no Twitter, o texto “Caixa preta”, da americana Jennifer Egan, escrito originalmente para a ferramenta, em pedaços de até 140 caracteres. São apenas dois exemplos de algo que vem sendo chamado de narrativas digitais, literatura eletrônica ou narrativas em rede — enfim, evidências de como a arte de contar histórias vem sendo remodelada com as novas tecnologias e os novos comportamentos que nascem delas. (Veja acima um divertido vídeo com um diálogo virtual entre um homem e uma mulher que se gostam, mas hesitam em se declarar em suas mensagens. A história está no que não foi enviado.) Links Narrativas
“Titanicware”, projeto de Claudio, editor da Obliq Press, será lançado ainda no formato físico de uma trilogia de livros, batizados de “MGY” (identidade do Titanic na rede de telégrafos), “Leme” e “Mashup”.
— As redes sociais em geral são usadas no final do processo, para anunciar o livro apenas — explica Soares. — Minha ideia é fazer o inverso. Desde o momento em que se inicia o processo, você insere o leitor. Cada um se torna um editor, escolhe seu caminho de ler, usando agregadores ou entrando nas redes separadamente. E a participação deles pode influenciar meus caminhos na edição dos livros que sairão no fim do processo. Escolhi o Titanic não por acaso. A memória sobre ele é fragmentada. E, numa simbologia, o próprio navio volta à superfície como fragmentos.
Soares nota que há experiências ao longo do século XX, de autores como John dos Passos e Mario Vargas Llosa, que forçaram as fronteiras da narrativa como vem sendo feito agora. Mas eles trabalharam com a limitação do livro, que tem, para o editor, “o DNA da tecnologia de Gutenberg”. Uma diferença que ele sentiu bem quando, em 2009, verteu sua biografia de Santos Dummont para o Twitter, no projeto “@sd8”.
O microblog, usado agora na publicação de “Caixa preta” (na conta @intrinseca), é uma ferramenta recorrente dessas novas narrativas (autores como Marcelino Freire exploram o formato do microconto, por exemplo). Mas há muitos outros caminhos sendo usados, experiências espalhadas em sites, em aplicativos de smartphones ou reunidas em bibliotecas de referência como Electronic Literature Organization e Literatura Electrónica Hispánica.
— São três as características que definem a literatura eletrônica: a interatividade; a hipertextualidade, daí a sensação de fragmentação, não linearidade; e a multimídia — explica Cristiane Costa, pesquisadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ (PACC) e coordenadora do curso de Jornalismo da universidade. — Mas o termo literatura é evitado, até porque o verbo ler é muito restrito para dar conta dessas experiências, nas quais você lê, vê, interage, compartilha... Basta notar que muito dessa produção está no YouTube, não nas bibliotecas.
Cristiane cita o exemplo do vídeo “The digital story of nativity”, um compêndio bem-humorado das possibilidades das novas narrativas. O filme o faz de forma despretensiosa, ao visitar a história mais recontada do Ocidente, o nascimento de Cristo, com ferramentas como SMS (o anúncio do anjo Gabriel a Maria), e-mail (Maria para José: “Precisamos conversar”), geolocalização (ao traçar a rota de Nazaré a Belém, “evitando romanos”), Foursquare (na busca por hospedagem), comércio virtual (os Reis Magos escolhendo presentes).
— Ainda existem muitos caminhos a se explorar — acredita Cristiane. — Já há contos feitos totalmente com emoticons. Usando recursos de geolocalização você pode reescrever “A volta ao mundo em 80 dias”, ou fazer algo como o “De onde vieram os homens que beijei” (no qual a autora Julia Debasse marca no Google Maps os tais homens e relata seu encontro com eles). E gosto da ideia da realidade aumentada (as imagens e palavras de uma folha de papel captadas por uma câmera “ganham vida” na tela do computador), porque ela não prescinde do papel, você precisa voltar a ele. É um diálogo entre papel e tela, real e virtual não aparecem separados por um muro. Está no YouTube uma ótima edição nesse formato de “Dr. Jekyll and Mr. Hyde”.
Clássicos como matéria-prima
A revisita de clássicos em novas formas narrativas é recorrente — em mais um exemplo, “Frankenstein”, de Mary Shelley, ganhou uma versão em aplicativo para iPad e iPhone —, talvez como forma de pisar em terreno seguro no conteúdo para se poder experimentar na forma. Mesmo quando não são diretamente relidos, os clássicos são requisitados como matéria-prima de remixes literários, corta e cola inerente à cultura digital aproveitado em sites como MixLit.
Os games são outro espaço no qual as narrativas digitais vêm se desenvolvendo com originalidade — o espaço de excelência, na visão da pesquisadora americana Janet Murray, autora de “Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço”.
— O “Façade” é o primeiro game literário, permitido pela tecnologia dos chatbots (ferramentas capazes de dialogar, simulando humanos) — cita Cristiane. — Nele, você é envolvido numa situação-limite com um casal e a história se desenvolve conforme suas reações.
Coordenador do CTS Game Studies da Fundação Getúlio Vargas, Arthur Protasio nota que essas experiências narrativas dos jogos, em casos radicais, vão além — ou aquém — dos diálogos:
— No “Journey”, a história é construída enquanto você segue seu caminho para uma montanha. Você encontra outros jogadores no trajeto, que podem só cruzar com você ou acompanhá-lo. Mas não há diálogo, sua comunicação com eles se dá no silêncio. É uma experiência profundamente contemplativa, numa linguagem extremamente nova, contemporânea.


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