Tela Quente

Aquecido pela entrada em vigor da lei de TV a cabo, no domingo, o mercado brasileiro de produção audiovisual cresce e se diversifica

Publicado originalmente em O Globo, Segundo Caderno
Terça-feria, 28 de agosto de 2012, página 1

Carlos Helí de Almeida

RIO - Depois de 50 anos dedicados quase que exclusivamente à produção de filmes, entre eles alguns clássicos das diversas fases do cinema brasileiro, a produtora LC Barreto (leia-se Luiz Carlos Barreto), em Botafogo, acaba de montar um departamento dedicado a projetos para a televisão. Não muito longe dali, no Largo do Machado, a Giros, há mais de 15 anos produzindo quase que exclusivamente programas de TV e vídeos institucionais, precisou aumentar a equipe em 30% nos últimos 12 meses.
A movimentação nas duas empresas está relacionada à entrada em vigor, no próximo domingo, da Lei 12.485, que obriga as operadoras de TV a cabo a veicular, em sua primeira fase, uma hora e dez minutos por semana de conteúdo independente nacional em horário nobre. É preciso preencher os espaços abertos nas grades de programação das emissoras, que poderão lançar mão das linhas de fomento do audiovisual.
— Há uma febre de desenvolvimento de projetos para a TV paga. Muita gente vinha trazer ideias aqui mas, como não tínhamos uma estratégia para a área, acabávamos deixando passar muitas ofertas. Foi essa nova demanda que nos estimulou a colocar em prática uma velha vontade da empresa, a de montar um núcleo só para desenvolver projetos para a televisão — explica Daniel Tendler, um dos diretores do novo departamento da LC Barreto.
Giros: de dez para 35 projetos anuais
Belisário Franca, diretor artístico da Giros, conta que quadruplicou a produção e o desenvolvimento de conteúdo ao longo dos últimos 12 meses.
— Tivemos que contratar mais pessoal para atender a demanda. Costumávamos desenvolver e produzir uma média de dez produtos por ano; hoje temos cerca de 35, em diferentes estágios de realização — diz ele, que está desenvolvendo a segunda temporada da série “Detetives da História” para o History Channel, entre outros programas. — Acho que, em função da lei, a produção de conteúdo independente no país vai passar das 400 horas (anuais) para três mil.
Alimentado pela lei, que em 2014 prevê que as emissoras tenham que aumentar a cota para três horas e meia semanais de programas nacionais, em horário nobre, o aquecimento do mercado audiovisual está provocando mudanças de hábitos e padrões em empresas estabelecidas, e estimulando o crescimento de outras. A LC Barreto, por exemplo, responsável por clássicos do cinema nacional como “Vidas secas” (1963), de Nelson Pereira dos Santos, e “Dona Flor e seus dois maridos” (1976), de Bruno Barreto, está se adaptando para produzir conteúdo com prazos mais longos. Uma das principais atrações da nova linha é “Rondon, o grande chefe”, docudrama em cinco episódios sobre a vida e a obra do sertanista Marechal Cândido Rondon (1865-1958), interpretado por Rui Ricardo Dias.
— Produzimos o “Oncotô”, para a TV Brasil, e o “Vampiro carioca”, para o Canal Brasil, mas nunca trabalhamos para a televisão de forma continuada — diz Tendler. — O “Rondon” talvez seja o primeiro feito dentro da lei das TVs a cabo. Mas também já fechamos um programa de cinco capítulos sobre os hábitos dos homens do subúrbio, chamado “Homem de verdade”, e outro de perfil feminino, o “Ela disse, ele disse”, inspirado no livro da Talita Rebouças.
Efeitos chegam ao sul do país
Tendler acredita que o entusiasmo pela abertura do mercado seja maior nas cidades fora do eixo Rio-São Paulo, onde, segundo ele, “era muito mais complicado entrar no setor das TVs a cabo, por não terem um mercado publicitário forte”. Os efeitos já foram sentidos no extremo sul do país, na Casa de Cinema de Porto Alegre, berço de um geração inteira de cineastas e publicitários.
— As pessoas que trabalham com audiovisual aqui em Porto Alegre estão muito otimistas, criando sem parar. É um momento legal, há uma gurizada vindo com muitos projetos, mas que precisam ser amadurecidos — comenta a diretora Anna Luiza Azevedo, uma das sócias da produtora gaúcha, que já tem parcerias estabelecidas com a Rede Globo, o Futura e o Canal Brasil.
— Aqui, na Casa, temos percebido uma demanda maior de projetos, mas todos ainda em negociação. Aumentaram também as proposta de licenciamento de títulos do nosso catálogo de filmes, inclusive os curtas-metragens, como “Ilha das Flores”, “3 minutos” e “O oitavo selo” — enumera Anna.
Capacitação para um mercado que se expande
Beneficiados por um recorte da Lei 12.485, que determina que 30% do conteúdo sejam produzidos por empresas, técnicos e artistas das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, o emergente polo do Recife se articula para abocanhar a sua fatia. A Fundação Joaquim Nabuco está fazendo a sua parte, criando cursos de capacitação para o mercado que se expande.
— As produtoras do Brasil inteiro estão se reconfigurando para isso — observa João Vieira Jr., da Rec, a maior produtora de cinema do Recife, responsável por filmes como “Cinema, aspirinas e urubus”, de Marcelo Gomes, e “Baixio das bestas”, de Cláudio Assis.
Num primeiro instante, os títulos do catálogo da produtora já foram requisitados por emissoras a cabo. Mas a Rec também trabalha com encomendas novas em dramaturgia, que apontam para uma linguagem híbrida entre cinema e TV, ainda em fase de negociação. Um deles tem o título provisório de “Contos brasileiros”, série idealizada a partir de textos curtos de autores nacionais pouco conhecidos.
— O roteirista de todos os episódios do programa é o Hilton Lacerda, que participou de quase todos os filmes da Rec. Vamos trabalhar com três contos de cada contista não consagrado, de diferentes cidades do país, do Rio Grande do Sul à Amazônia — adianta Vieira Jr. — A ideia é jogar luz sobre a obra desses escritores e defender a cultura brasileira, dotá-la de universalidade.
Temor de centralização
A GP7 Cinema, do Paraná, não atua no eixo Rio-São Paulo e não se beneficia da norma que defende algumas regiões. Produz teledramaturgia com alguma regularidade para a RPC, filiada da Rede Globo, desde 2009, mas reage de forma moderada diante do impacto da obrigatoriedade da lei.
— Estamos tendo oportunidade de criar uma indústria audiovisual. Mas tenho receio de que as produtoras independentes não tenham know-how para suprir a demanda, e isso possa ser usado pelas TVs a cabo para derrubar a lei, ou ignorá-la, como fizeram com a lei do curta nos cinemas (de 1975, que instituía a exibição de um curta nacional em toda sessão de longa estrangeiro) — pondera Guto Pasko, diretor da GP7, também diretor de articulação política e de integração da ABD (Associação Brasileira de Documentaristas e Curtas-metragistas) nacional.
Pasko teme ainda que os recursos destinados à lei acabem concentrados, “mais uma vez, no eixo Rio-São Paulo, nas mãos dos mesmos”:
— Quem garante que a cota mínima dos 30% para os estados periféricos será cumprida? A LC Barreto nunca se preocupou com a TV, agora tem uma divisão só para ela. Fernando Meirelles, da O2, disse que já recebeu dezenas de projetos só para atender a cota. As TVs acabam procurando quem já tem experiência na área, que pode entregar trabalhos de qualidade dentro do prazo — alerta o produtor.
Andrea Barata, da O2, confirma o desenvolvimento de quatro projetos: “Contos de Edgar”, série baseada em textos de Edgar Allan Poe, “Pontos de vista”, programa que aborda temas polêmicos variados, ambos para a Fox, “4ever young”, série de 13 episódios, para o GNT, e “Destino SP”, para a HBO, sobre o impacto de estrangeiros na capital paulista. Meirelles, que avisa que ainda há “mais uma dúzia de projetos na marca do pênalti”, levanta a bandeira branca e analisa:
— Não creio que o nível dos programas será comprometido. TV vive de audiência, a briga aí é de foice. Ninguém será maluco de pôr qualquer coisa em horário nobre apenas para cumprir a lei. Seria como dar tiro no pé. Minha expectativa é que, em dez anos, nossa TV esteja muito renovada, graças a essas mudanças.
Entenda a lei:
Sanção
Projeto de lei de iniciativa parlamentar, a lei 12.485, conhecida como lei da TV a cabo, teve sua versão final aprovada pelo Senado em agosto de 2011, e sancionada pela presidente Dilma Rousseff no mês seguinte.
Regras
O dispositivo, que entra em vigor no dia 2 de setembro, obriga as operadoras de TV paga a veicular uma hora e dez minutos por semana de produção nacional em horário nobre. Em 2014, esta cota subirá para três horas e meia.
Recorte
Na lei, há um recorte que determina que 30% desse conteúdo destinado às TV por assinatura sejam produzidos por empresas, técnicos e artistas das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Comentários