Intelectuais, chefs, estilistas e políticos: não foi só a classe C que se encantou com ‘Avenida Brasil’


Com personagens suburbanos e trama popular, novela das 21h também é sucesso entre as classes A e B


Publicado originalmente em O Globo, Revista da TV
Domingo, 2 de setembro de 2012, página 12
Igor Fidalgo
RIO - Grande parte da história é passada num subúrbio carioca povoado por periguetes, malandros, jogadores de futebol de segunda divisão e novos ricos, entre outros personagens populares. A trilha sonora — com kuduro, pegada sertaneja e pagodes triviais como “Eu quero tchu, eu quero tcha” e “Assim você mata o papai” — não é o que os críticos consideram um som de qualidade. Muito se falou que “Avenida Brasil” era talhada para agradar à emergente classe C, mas, ao longo desses 138 capítulos, uma audiência variada tem grudado os olhos na tela às 21h. A novela de João Emanuel Carneiro atinge, também, as chamadas classes A e B. E angariou fãs entre gente do cinema, da política, da música, da decoração e da academia... Gente que havia perdido até o hábito de ligar a TV.
—“Avenida Brasil” é a melhor novela do século XXI — sentencia o produtor musical Nelson Motta.

Escritor, ele conta que já teve suas fases de noveleiro, quando assistia a “Roque Santeiro” e “Vale tudo”. Recentemente, gostou muito de “Paraíso tropical “ e “Caminho das Índias”. Porém, nada se compara aos conflitos de Nina (Débora Falabella), Carminha (Adriana Esteves) e cia.
— De cara, o diferencial é o dilema entre viver o grande amor ou a grande vingança, o foco central no subúrbio, a metáfora do lixão, os lixos humanos em que as pessoas podem se transformar, a ironia das situações e o humor dos diálogos, já que quase todos os personagens têm tiradas ótimas — enumera Nelson, que elege exatamente os tipos suburbanos como seus preferidos.
E ele não é o único fã declarado da turma do Divino. O jeito despudorado, o pé na malandragem, a fala mansa, as curvas sinuosas e o visual periguete das gostosonas Suellen (Isis Valverde) e Olenka (Fabiula Nascimento) agradam a homens e mulheres.
— Adoro os beges e brancos da Carminha. Acho o figurino do Max (Marcello Novaes) o máximo. E sou superfã dos looks jeans de Olenka — avalia a estilista Isabela Capeto.
Para Isabela, não basta apenas sentar no sofá e assistir. Ela conta que, de tanto comentar sobre a história no trabalho, acabou por angariar vários novos telespectadores. E que adora promover jantares para os já devidamente viciados no folhetim do horário nobre. Com direito até a abacaxis decorativos semelhantes aos da mansão de Tufão (Murilo Benício) — e que figuram na lista dos itens mais pedidos da Central de Atendimento ao Telespectador (CAT):
— Essa novela me pegou!
Empolgada, a cantora Tiê conta que, há pouco tempo, fez um churrasco em casa e reuniu amigos como a estilista Rita Wainer e o DJ Zé Pedro. Num domingo, claro, para ninguém perder nenhum capítulo. Juntos, cantarolaram os hits popularescos da trama num ritmo “MPB-folk”.
— Já faz um tempo que canto “Eu quero tchu, eu quero tcha” no meu show. Misturo com “Seven nation army” do (duo americano) White Stripes, porque tem quase o mesmo riff — revela.
Organizadora do Casa Cor no Rio de Janeiro, Patricia Mayer conta que ainda não marcou encontros para discutir “Avenida Brasil”. Mas costuma se reunir com a família para prestigiar a novela que, segundo ela, também a aproximou das empregadas da família.
— Percebi que a coisa estava séria quando me vi obcecada. Não conseguia sair de casa — exagera.
Apesar de morar em São Conrado, endereço nobre do Rio, Patricia acha a Zona Sul da novela “chatérrima”.
— Sem dúvida o subúrbio é mais legal, mais natural — pondera.
Pesquisadora, editora e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Heloisa Buarque de Hollanda acha que “Avenida Brasil” chegou na TV para “sacudir o gênero”:
— É uma novela culta, eletrizante. João Emanuel sempre foi cinéfilo e ele conta a história de um jeito cinematográfico. Cada capítulo parece uma metralhadora, um fliperama. Li que chegaram a comparar o autor a David Lynch (cineasta, diretor de filmes como “Cidade dos sonhos”) devido à inversão de personagens.
Também pesquisador e professor de Cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF), Tunico Amâncio diz que “Avenida Brasil” o deixou intrigado desde o início.
— O diferencial é o alto volume das peripécias e de ganchos que são propostos e desfeitos com uma velocidade grande — analisa ele, afirmando não saber por que as pessoas se renderam ao Divino: — Certamente que não pela nostalgia do subúrbio. Pela potência dos personagens, talvez?
O ensaísta Francisco Bosco concorda. Para ele, a novela não funciona porque é necessariamente focada na classe C. Mas porque é bem feita.
— Tenho a impressão de que seu sucesso se deve simplesmente à sua qualidade superior à das novelas de hoje em dia — opina.
O antropólogo Roberto DaMatta enfatiza que vê “Avenida Brasil” como um exercício diário de observação de comportamentos. E destaca que a vingança, o tema principal da história, é um assunto que desperta interesse.
— Todo mundo tem vontade se vingar de alguém, seja no trabalho ou na família — afirma: — A novela é uma topografia da vida social brasileira. Ali, o vilão é castigado, o que não acontece na vida real. E os pais dizem que amam os filhos, hábito que não temos muito.
Professor de Filosofia e Estética da Unicamp, Roberto Romano avalia que João Emanuel “foi feliz ao mostrar o momento de crise que vivemos e a dissolução dos valores”
— A trama capta o enfraquecimento dos laços de união coletiva. A Carminha sintetiza os limites do suportável.

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