A NARRATIVA DA SÉRIE: Uma dramaturgia de forma e conteúdo



Este é o primeiro de série de resumos dos seminários realizados pela turma de TV e Vídeo 2012.1. O presente trabalho foi produzido por Bernardo Santos e Tamiris Lourenço, no dia 04/10/2012 e abordará as séries de ficção. 

Se pensarmos a televisão – não só enquanto produto e programa específicos – mas também como um fluxo heterogêneo de informação, que alterna canais, horários e públicos, é possível identificar uma dramaturgia própria: de forma de conteúdo. Não está em jogo apenas a narrativa de cada programa (personagens, conflito, enredo), naquela célebre curva desenhada por Robert McKee e tantos outros estudiosos debruçados sobre a arquitetura do drama. É preciso, além disso, compreender uma narrativa maior, que organiza todos os canais e seus respectivos programas dentro de um universo de convivência e competição, no qual a grade determina a fatura dramática que, ao longo do dia, chegará ao espectador. Também o processo de programação, nesse caso, é desenhado a partir da base fornecida pela dramaturgia – prevendo altos e baixos, momentos de clímax (em especial, no horário nobre) e de alívio, que, diariamente, proporcionam ao público uma experiência emocional completa diante da televisão.           

Para investigar a dinâmica narrativa da série – em micro e macroestrutura – decidimos partir de dois seriados em exibição, que permitissem explorar contextos e conteúdos diferenciados dentro do que se faz hoje para a televisão. Por um lado, elegemos “Grey’s Anatomy” - um seriado médico consolidado, na nona temporada, cuja concepção remete a um gênero e, com isso, a uma fórmula testada e aprovada na televisão norte-americana. Em contraste, há “Sessão de Terapia”, série israelense em versão brasileira, exibida por um canal que não costuma investir em ficção nacional, estreia desta semana (primeira semana de outubro) e com uma forma não usual de trabalhar a dramaturgia dentro da TV. É o diálogo entre estas duas obras que constitui o texto a seguir.

“Grey’s Anatomy” e o lugar do clássico na TV

Por “narrativa seriada” entende-se, primeiramente, a fragmentação de um conteúdo. Isso se dá tanto no parâmetro do episódio, se considerarmos cada break como um intervalo entre os fragmentos, quanto na leitura da série como um todo e de cada episódio como seu fragmento. Dessa forma, podemos analisar a dramaturgia da série tendo um episódio como unidade fechada em si (micro-narrativa) ou mesmo diante da totalidade da série, na soma dos episódios e temporadas (macro-narrativa). 

Cada episódio tem uma narrativa bem amarrada, na qual é possível identificar claramente: introdução, desenvolvimento, clímax e conclusão – nos moldes da dramaturgia clássica. No caso de “Grey’s Anatomy”, uma série médica, a micro-narrativa é marcada pelos casos clínicos apurados e tratados, no hospital, pelos personagens centrais. Em cada episódio, acompanhamos três ou quatro diagnósticos que se evoluem simultaneamente, sendo divididos e organizados pelos breaks          

São quatro intervalos, ao todo. Desse modo, a narrativa é segmentada em quatro partes, que evoluem em termos de emoção e significado. A primeira delas é destinada à abertura (vinheta) da série. Há, geralmente, uma narração over da personagem principal, introduzindo o tema daquele episódio e preparando o espectador para o que está prestes a ver.              

Na segunda parte, o público conhece os pacientes que serão tratados naquele dia. A princípio, não se sabe quais são as doenças e nem como curá-las – o que é uma ferramenta própria para motivar o suspense nesse gênero de série. Os sintomas e os exames, aliados ao conhecimento dos médicos, devem (em regra geral) serem suficientes para salvar o paciente, antes do fim do episódio. É o que acompanhamos nos blocos seguintes. Em geral, após o terceiro intervalo, ocorre o chamado “ponto de virada” – plot point – que muda o curso da narrativa para manter o interesse crescente do espectador. O “ponto de virada” está relacionado, em geral, ou a um diagnóstico equivocado ou ao mal súbito que acomete um dos pacientes (infarto, parada cardíaca, etc.) – algo que obrigue os médicos a “correr” para tentar salvar mais uma vida.

No último bloco – seguindo o expediente clássico-narrativo – há a conclusão. O público vê o resultado das cirurgias, com duas soluções possíveis: cura ou morte. Bem como na introdução do seriado, os episódios sempre trazem, ao final, cenas que constroem, pouco a pouco, a macro-narrativa. Mais uma vez, o recurso da narração over é usado para endossar o raciocínio feito no início. Há sempre um tema e uma mensagem final relacionada a ele. Esta “moral da história” é expressada verbalmente pela personagem principal – recuperando, de certa maneira, “a voz do saber” e a intenção didática que foram características dos primórdios da televisão.   


 Paralelamente, há o desenvolvimento da vida pessoal dos personagens principais – mais relacionadas à macro-narrativa. São diálogos e cenas curtas que, em geral, ocorrem nos corredores do hospital. Embora pareça ter menos importância, na estrutura do episódio, é isso que constitui a trama da série. Sempre há uma conexão, mesmo subjetiva, entre os dois âmbitos pelos quais a narrativa transita. Os casos dos pacientes remetem à vida pessoal dos médicos – até mesmo interferindo em suas decisões. Há constante diálogo entre micro e macro.           

Também a conclusão é construída para as duas esferas. Porém, no caso da macro-narrativa, o fechamento é apenas parcial. Por mais que haja o “ponto final” - um alívio para a tensão do episódio – o público sabe e espera que a trama se desenvolva e continue em seguida. Assim, a ferramenta do “gancho” não é tão comum entre um capítulo e o próximo. Com exceção do final de cada temporada, que cria expectativa em relação à seguinte. O oposto, porém, pode ser observado na micro-narrativa. Entre cada break, surgem perguntas e informações que o espectador deve se interessar em acompanhar, sendo conduzido do início ao fim de cada episódio. 


“Grey’s Anatomy” é exibido pela Sony - um canal de entretenimento que veicula séries e reality shows. A sétima temporada é reprisada diariamente, às 17h, e episódios duplos da oitava também são exibidos. A partir do dia 22, porém, com a estreia da nova temporada, o seriado passa a ocupar a faixa das 22h, compondo o horário nobre do canal. Entre outras séries médicas (Royal Pains, Private Practice) e policiais (CSI) - o que nos permite concluir que o canal opta por séries de gêneros clássicos – policial, médico, sitcom – cujas fórmulas já fazem parte do repertório de qualquer espectador e, com isso, ocupam o horário principal com relativa segurança.
                

“Sessão de Terapia” e a experiência com novos formatos

Baseada na série israelense Be’Tipul, criada por Hagai Levi, “Sessão de Terapia” é a versão brasileira (preservando o roteiro e a  mise-en-scène da original) de um drama diário que retrata os conflitos, mais internos que externos, da relação de um psicólogo com seus pacientes. Diversos países já produziram adaptações nacionais da mesma série – embora a única que tenha se tornado um produto internacional seja a norte-americana “In Treatment”, produzida pela HBO e, inclusive, exibida no Brasil. Caracterizar “Sessão de Terapia” como um exemplo atípico de seriado para televisão é uma escolha deste trabalho, baseada em característica de conteúdo, produção e forma – que diferem e transformam o seriado clássico e seus padrões.              


Esta série é um produto incomum, em muitos sentidos. Se levarmos em conta apenas o conteúdo, “Sessão de Terapia” flerta com o ideal pensado por Stanislavski para a dramaturgia. Os princípios da narrativa – conflito, superação, clímax – são propostos no clima de confinamento, onde toda ação é “interna”, começa e termina dentro de um personagem. O enredo é um flagrante de uma consulta psiquiátrica. Desse modo, o espaço é um só: o divã. Não existem flashbacks e raras são as cenas externas. A narrativa é somente contada e sentida, em especial, verbalmente. O movimento e a ação constante – tão presentes nos pilares das séries policiais ou médicas, como a que foi estudada anteriormente – são reduzidos ao mínimo. Com isso, a proposta não poderia ser mais precisa: mergulhar no personagem e no arquétipo que ele representa da sociedade.


Por outro lado, a versão brasileira também oferece adaptações em relação à dos demais países. Aqui, a série não tem intervalos. São trinta minutos contínuos de  programa. No entanto, herda-se da dramaturgia original o sistema de “ganchos” que torna óbvio onde estariam as pausas e as retomadas. Porém, no que tange à dramaturgia, o que seria “gancho” torna-se apenas um plot point: momento no qual a trama ganha novo fôlego, ruma à outra direção, por conta de novas informações terem sido somadas.
Se a narrativa inova, no entanto, também o formato não continua a ser o mesmo. O que é solicitado pelo conteúdo, certamente, ecoa na forma. Contrariando a tendência das narrativas seriadas de hoje, “Sessão de Terapia” exibe um novo episódio a cada semana. E mais: é um programa diário, contando 4 histórias paralelas, que oferecem ao espectador a possibilidade de acompanhá-las juntas ou independentemente. O público, dessa maneira, pode, dentro do mesmo seriado, escolher e prestigiar o personagem pelo quais mais se interessa; criando uma nova maneira de se relacionar com a dramaturgia. Além disso, para evitar que a narrativa seja fragmentada ao ponto de inviabilizar a compreensão, o último episódio de cada semana – no qual o psicólogo é quem se consulta com seu supervisor – as quatro tramas são recuperadas e relembradas ao espectador, sempre na forma de situação narrativa.                                           
Pensar em “Sessão de Terapia” como produto também remete a um cenário atípico na televisão brasileira. O seriado é exibido por um canal alternativo (GNT), fora da televisão aberta e que não costuma investir no desenvolvimento de ficção nacional. Além do que, o programa é um projeto pessoal de um conhecido diretor/ator (Selton Mello) e ganhou um considerável investimentovisível tanto na divulgação quanto no apuro técnico/artístico do programa e no seu destaque dentro da grade do canal. A série ocupa – sete dias na semana – o horário nobre do GNT e tem horários alternativos. Aos sábados e domingos, todos os episódios são repetidos.
Sendo um produto diferenciado e um exemplo tão incomum no universo das séries exibidas no Brasil, cabe investigar como a programação dos outros canais recebe “Sessão de Terapia” e se a competição pelo espectador foi alterada pela oferta desse novo produto.     
Analisando a grade do GNT, é possível verificar que cada dia da semana conta com um horário nobre organizado por temas. Segunda-feira: moda. Quarta-feira: culinária. Sexta-feira: estética e saúde. Em geral, a noite começa com programas informativos sobre tais temas e, mais tarde, no núcleo do horário nobre, temos dois seriados dramáticos de peso: “Sessão de Terapia” e “Brothers and Sisters”, que estabelecem a cota de dramaturgia necessária para um fim do dia satisfatório ao espectador. Aos sábado e domingos, na proposição do seriado original, não haveria episódios. Todavia, na atual conjuntura, a programação do GNT está tão atrelada ao seriado estudado, que, novamente, o horário principal é ocupado pela reprise dos cinco episódios, um em seguida do outro.
É notável – tanto na campanha interna do canal, durante os intervalos e interprogramas, quanto no que se vê na mídia impressa – que o GNT espera um retorno, em público e prestígio, para esta série que, atualmente, tornou-se o centro da sua programação. Comprar a capa da “Revista da TV”, distribuída pelo Jornal O Globo, como publicidade é o mais evidente exemplo de investimento. Talvez por isso o horário da série, durante a semana, seja um pouco incomum (22:30). É possível que a intenção fosse escapar da competição com programas hiperpopulares, inclusive, da televisão aberta. Em especial, a novela das nove – “Avenida Brasil” – que é um fenômeno nacional e termina exatamente a tempo de começar “Sessão de Terapia”.
Para estudar mais a fundo os mecanismos da competição, é preciso tomar conhecimento de dois fatores da maior relevância. Antes de tudo, o perfil e a grade de cada canal em competição direta com o GNT. Aqueles que estão próximos no line-up e disputam a audiência de uma fatia semelhante do público. E por fim, entender também a “cordialidade” que existe, eventualmente, entre canais ditos “irmãos”: que fazem parte da mesma programadora, a Globosat.      
É fundamental observar como os canais da Globosat ocupam o mesmo horário com opções de programa que são, em geral, capazes de atrair públicos diferentes e, assim, evitar a competição direta. O Multishow, por exemplo, também investe em produção de seriados de ficção no Brasil. Na faixa de “Sessão de Terapia”, porém, exibe invariavelmente programas de humor. Toda programação do canal visa um público mais jovem e especialmente inserido no mundo digital, na cultura dos “memes” e do stand-up comedy – não exatamente o público-alvo da série do GNT, ainda que possam existir espectadores que frequentem os dois tipos de programas. O Viva, por sua vez, investe no público nostálgico, interessado em rever programas marcantes de outras épocas. “Dallas”série clássica norte-americana, exibida por mais de dez anos, recheada de ação, intrigas, som e fúria – compete com “Sessão de Terapia”, mas não chega a mobilizar o mesmo público.

VIVA
MULTISHOW
GNT
18:00
Mais você (Variedade)
Departures
GNT Fashion (Moda)
Vamos combinar (Moda)

18:30


Vamos combinar (Moda)
19:00
Vídeo Show (televisão)
TV Neja (música)
Chuva de arroz (casamento)
19:30

TVZ (música)
Superbonita
20:00
Escolinha do professor Raimundo (Humor)

Desafio da beleza (estética)
20:30
Muvuca (variedades)

Chuva de Arroz (casamento)
21:00


Vamos combinar (Moda)
21:30
Nova York contra o crime (série)
Lugar em comum (turismo)
Superbonita (estética)
22:00

Mundo em movimento (dança)
GNT Fashion (Moda)
22:30
Dallas (série)
Prêmio Multishow de Humor (Humor)
Sessão de Terapia (Série)
23:00


Brothers and Sisters (Série)
23:00
JK (série)
Sensacionalista (Humor)



No entanto, fora da Globosat e dos seus canais filiados, a competição se incrementa. Na Sony, um célebre repertório de séries norte-americanas, reality shows e filmes ocupam o mesmo horário de “Sessão de Terapia”. O mesmo ocorre na HBO. É o canal que mais oferece produtos de franca competição. Durante a semana, em seu horário nobre, quando não exibe filmes, veicula seriados também de conteúdo diferenciado. Basta lembrar que “In Treatment” foi exibida neste canal. O público que procura séries deste feitio, portanto, poderia ser atraído por produtos como “Girls”, “The Newsroom” ou até mesmo outro exemplar de seriado de produtora independente brasileiro “(fdp)”. Nenhum destas séries, porém, radicaliza em termos de forma como é a proposta de “Sessão de Terapia”.
Finalmente, é interessante observar como o público se comporta e trafega no meio de tamanha oferta de programação. Para isso, basta ir às ruas e ouvir “o que se fala da televisão” – levando em conta que, desde sempre, os programas funcionaram como um excelente incentivo ao diálogo e à opinião – ou, com os novos recursos da comunicação, visitar a internet em busca da palavra aberta nas redes sociais. Assim, por exemplo, qualquer um pode confirmar que “Grey’s Anatomy” goza de um público majoritariamente feminino e que compartilha e comenta com expectativa as notícias e os spoilers da nova temporada. Da mesma maneira que, apurando o que se fala sobre “Sessão de Terapia”, é possível entender que o fluxo de espectadores é mais complexo do que se imagina. De fato, vale lembrar que a arte – na literatura, no cinema ou na televisão - é um jogo de risco; no qual nunca se sabe a resposta do outro. Contudo, é no encontro com o público que, por fim, a obra está completa.
BIBLIOGRAFIA:
FECHINE, Yvana & SQUIRRA, Sebastião (orgs.) Televisão Digital: Desafios para Comunicação. Porto Alegre, Sulinas, 2009.
HOINEFF, Nélson. A Nova Televisão. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1996.
MACHADO, Arlindo. A Televisão Levada a Sério. São Paulo, Editora Senac, 2000.
PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de Televisão. São Paulo, Moderna, 1998.
ECO, Umberto. A obra Aberta. São Paulo: Perspectiva. Coleção Debates.
STANISLAVSKI, Constantin. A Construção do Personagem. São Paulo, Civilização, 2008.             
 Sites:
 gnt.globo.com/
canalviva.globo.com/
multishow.globo.com/
br.canalsony.com/










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Sessão de Terapia (Série)

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