A “incontrolável” estética glich, que usa defeitos
tecnológicos como ponto de partida, se espalha cada vez mais por áreas como
fotografia e música
[publicado originalmente em O Globo, por Carlos Albuquerque]
Errar é humano, mas não foi isso que aconteceu quando o
rapper Kanye West lançou o vídeo de “Welcome to the heartbreak”, há dois anos,
com imagens distorcidas e pixels estourando por toda parte. Muita gente acho
que seus aparelhos de televisão ou telas de computadores estivessem com
problemas.
Algo parecido aconteceu com outro vídeo, de “Round and round”,
do grupo americano Ariel Pink’s Haunted Graffiti. Dirigido por Wayne Coyne (dos
Flaming Lips), ele também trazia imagens aparentemente fora de sintonia, como
se tivesse gravado por uma câmera com mau contato. Foi feito, porém, com o
iPhone do próprio Coyne, que depois reclamou que plataformas como o YouTube e
Vimeo estavam considerando as imagens do vídeo – segundi ele, intencionalmente psicodélicas
– “´ruídos visuais” e, ao tentar corrigi-las, não conseguiam exibi-lo
corretamente.
Na verdade, tanto West quanto Coyne estavam tentando mostrar
que, às vezes, quanto mais falhas no sistema, melhor. Usando bugs e defeitos
tecnológicos como ponto de partida e atuando sempre com o imprevisível, a arte
glitch que os inspirou se espalha cada vez mais por áreas como a fotografia e a
música.
Da mesma forma como os punks atacaram a música estéril e inofensiva que
dominava as rádios FM no final dos anos 1970, nomes como o americano Philip
Stearn, a holandesa Rosa Menkman e o brasileiro José Irion de Neto, entre
muitos outros, usam hoje o glitch (termo que originalmente caracteriza um
problema técnico) com uma reação contra a excessiva pureza do mundo digital,
com seus tablets com “retina display”, televisores de alta definição e imagens
retocadas com programas como Photoshop.
- Acho que a arte glitch se assemelha ao movimento punk na
medida em que nela o resultado final também é menos importante do que o
processo – diz Irion, artista digital e designer gráfico, vencedor do Critical
Glitch Artware, no festival de novas mídias Notacon, realizado em Ohio, nos
EUA, em 2010. – E, claro, há também uma reação natural contra toda a estética
clean que nos cerca.
Há quem diga que o primeiro a usa a expressão “glitch” foi o
ast62, mesmo astronauta John Glenn, em 1962, mesmo ano em que se tornou o
primeiro americano a viajar pela órbita da Terra. No final da década de 1990, o
termo passou a ser associado com a música de artistas eletrônicos
experimentais, como Aphex Twin, Prefuse
73 e Autechre, repleta de “sujeiras” e barulhos inusitados. O boom tecnológico
dos anos 2000, com a popularização dos computadores portáteis e dos telefones
celulares, além do avanço da internet por banda larga, fez com que o conceito
de glitch ampliasse na mesma medida em que a relação com esses aparelhos foi
ficando ainda mais próxima.
- A primeira vez em que vislumbrei o glitch como
possibilidade artística foi em 2005, quando visitei a exposição “World wide
wrong”, do coletivo belga/holandês Jodi, em Amsterdã – conta a artista
holandesa Rosa Menkman, autora do livro “The glitch moment”, lançado no final
do ano passado, e considerada uma das principais teóricas do assunto. – Eles tinham
criado uma instalação chamada “Untitled game”, a partir de erros na programação
do videogame “Quake”. Foi quando percebi que o mundo digital não consistia
apenas da busca da perfeição e oferecia infinitas opções de atuação dentro dos
erros e dos defeitos.
Na prática, como mostra o filme “The art of glitch”, exibido
no mês passado pela rede de televisão americana PBS (e disponível no YouTube),
trata-se de subverter os limites de obras audiovisuais, através de repetidas
alterações em seus códigos-fonte (como por exemplo, abrir uma foto em um editor
de textos, embaralhar seus comandos e depois reabri-la num editor de imagens),
em sequências cada vez mais intricadas e elaboradas. Programas online como
Image Glitcher simplificam esse processo e oferecem a chance de qualquer um
brincar de arte glitch, bem coo aplicativos como Glitch Machine (para música) e
Decim8 (para fotografia). Mas eles são questionados por Stearns:
- Arte glitch é incontrolável por natureza. Ela é sobre
atuar dentro do caos. Não há como prever os números que vão surgir quando você
joga dados – exemplifica ele, que, desde o começo deste ano, criou o projeto “Year
of the glitch”, no qual posta, diariamente, no tumbler homônimo, suas obras.
- Meu objetivo é explorar novas técnicas e possibilidades
para minha própria arte. E esse é um desafio fascinante, afinal criamos
máquinas para que elas simbolizem a perfeição, através de comandos rígidos de
funcionamento. Só que elas, às vezes, se rebelam contra esses comandos. Na arte
glitch, pegamos um pouco desse espírito de rebelião. Queremos ser como essas
máquinas, rejeitar as regras que nos são impostas e ser livres também.
“SEMPRE PERTO DO ERRO”
Seguindo a trilha de Kanye West e Ariel Pink, outros artistas
têm usado a estética glitch em seus vídeos, casos recentes do grupo Liars, com
a música “Brats”, e do Animal Collective, com “Today’s supernatural”.
- A essência da nossa música é o glitch – explica Josh Dibb,
guitarrista e cantor do Animal Collective. – Das melodias às batidas,
trabalhamos sempre perto do erro. Ele nos atrai. Embora não seja tão radical
quanto o de Kanye West, o nosso novo vídeo simboliza isso.
[postado por Marina Moreira]
[postado por Marina Moreira]
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