Caindo na Real

[publicado originalmente em O Globo, por Rodrigo Fonseca]



Diante de todos os esforços da TV brasileira para retratar a chamada classe C, resvalando por vezes no estereótipo, “Subúrbia”, seriado que Luiz Fernado Carvalho prepara para estrear em 1º de novembro, promete trilhar uma margem oposta aos olhares mais recorrentes da teledramaturgia sobre a periferia carioca. De flerte com o realismo num registro quase documental, incomum à sua estética de tintas barrocas e verve operística, o diretor de “Hoje é dia de Maria” (2005) e “Afinal, o que querem as mulheres?” (2010) busca uma visão menos folclórica de Madureira, Quintino e outros pontos do subúrbio. É lá que a jovem Conceição (vivida pela estreante Erika Januza) reinventa sua história, passando de desvalida a estrela, abrindo para plateia  um outro lado do Rio, visto a partir de um contingente de atores negros – muitos deles iniciantes – que tem como “patriarca” Haroldo Costa, cuja carreira já soma seis décadas. Paulo Lins, autor de “Cidade de Deus”, foi o parceiro de Carvalho na criação do mundo de Conceição e no roteiro.

- Existe uma realidade virtual inventada pelo mercado, chamada Classe C, que vem fabricando uma visão do subúrbio resumida ao excesso, sem perceber o quanto o lirismo daquelas áreas está se desfazendo. Eu queria falar desse mundo que vive uma dramaturgia à flor da pele. A dramaturgia real, sem prosaísmos, das mães que ficam no portão esperando a chegada dos filhos que pegam o trem e ônibus para poder voltar para casa. Para fazer isso, eu precisava me despojar de todo vocabulário da ficção oficial – explica Carvalho, que recebeu o GLOBO nas gravações em Paquetá, onde reproduz as paisagens da Madureira dos anos 1990, em meio à explosão do funk nas rádios.

Iniciadas em julho, as gravações vão passar por outras 49 locações, entre Paquetá e diferentes pontos do Rio, até seu encerramento, na primeira semana de outubro, mobilizando 63 atores, cerca de 2,5 mil figurantes e uma equipe técnica de 250 profissionais. A série terá oiro capítulos, exibidos semanalmente pela Rede Globo, sempre nas noites de quinta-feira. A fotografia é de Adrian Teijido, responsável pelo visual do blockbuster  “O Palhaço” (2011) e parceiro de Carvalho desde “A Pedra do Reino” (2007). Inspirado pelo fotojornalismo, com especial referência (e reverência) aos retratos clicados por Walter Firmo, o próprio Carvalho por vezes opera a câmera, como fez ao gravar a sequência em que Conceição e sua família adotiva, chefiada pelo casal Mãe Bia ( a cantora Rosa Marya Colin) e Seu Aloysio (Haroldo Costa), pegam uma Kombi para ir à praia de Ramos, num dia de congraçamento.

INÉDITAS DE ED MOTTA E INFALÍVEIS DE RC

- Há uma cartilha de representação na TV que precisa se sacudida neste momento em que a indústria criou padrões confortáveis de atuação e de direção. De certa forma, essa  série é uma autocrítica ao que fiz de “Os Maias” (de 2001) até hoje, quando trabalhei sempre com o filtro do com acabamento, sob um olhar quase renascentista – diz o diretor, hoje com 52 anos. – Aquilo tudo veio de mim, tinha sinceridade e rendeu trabalhos bonitos. Mas é hora de quebrar com as minhas próprias convenções, que tinham elementos circenses, de ópera e de folguedos populares. Esses filtros me protegiam do real. Não podia mais me ater a eles. Queria ir com mais coragem. Queria mergulhar sem medo de morrer afogado numa dimensão de afetos que pessoas simples guardam com rigor e fé.

Carvalho diz ter uma história pessoal que o aproxima do universo de Conceição, personagem nascida em Minas Gerais, numa família miserável. Para escapar da pobreza, ela viajar para o Rio ainda menina e chega a ser presa numa instituição para menores infratores antes de encontrar um abrigo no abraço e Seu Aloysio e uma paixão no sorriso de Cleiton, funcionário de um posto de gasolina vivido por Fabrício Boliveira, visto em novelas como “A Favorita”.

- Tive uma “mãe preta”, a Betânia, uma cozinheira mineira. Ela entrou na minha vida quando eu estava começando a dirigir, nos anos 1980, e ficou comigo uns 25 anos. Ela me contava sua história, porque ficamos amigos. Betânia era uma negra linda, que morreu após uma remoção de varizes. Eu já tinha apresentado à Globo um projeto ligado ao subúrbio há muito tempo. Mas o que eu apresentei não tinha a alma que tem hoje. Essa alma veio da Betânia, cuja história Paulo Links e eu escrevemos como prosa corrida, como um livro, antes do roteiro. Ele me ajudou a preencher os hiatos dos relatos de Betânia. Eu precisava de alguém que, como ele, conhecesse aquele universo e fosse negro, porque eu queria tratar a cultura de dentro – diz Carvalho, que vai lançar “Subúrbia” como romance e HQ junto com a série.

Além de Boliveira, um dos poucos rostos em destaque na TV trazidos para a série foi Paulo Tiefenthaler, do programa “Larica Total”, do Canal Brasil. O resto do elenco reúne expoentes d grupos como Nós do Morro, Afroreggae e Companhia dos Comuns.

- Se eu estava me desconstruindo, precisava apresentar ao país novos protagonistas, arriscando uma aposta em não atores. A indústria da TV criou um padrão de representação que está desgastado. Esses novos rostos trabalham numa linha de risco, sem padronização – diz o diretor, que desenvolve em paralelo o projeto “A aldeia”, baseado na obra de Fiódor Dostóievski, e uma série sobre o poeta Castro Alves com roteiro de Benedito Rui Barbosa.

Astro da montagem de “Orfeu da Conceição”, de Vinicius de Moraes, no Teatro Municipal em 1956, Haroldo Costa vê as escolhas estéticas de Carvalho como uma centelha de mudança na imagem dos negros na televisão:

- Nesta realidade em que a TV não mostra criança negra nem no lixão de “Avenida Brasil”, “Subúrbia” surge como fábula inter-racial cariosa, falando da Zona Norte com poesia.

Para trilha sonora, além de composições inéditas de Ed Motta numa toada da black music, Carvalho reservou um presente póstumo para Betânia:

- Ela idolatrava Roberto Carlos, que nos autorizou a usar algumas músicas. “O divã” é uma delas. São músicas que o subúrbio real escuta. Com amor.

[postado por Marina Moreira]

Comentários