'Suburbia' é poética e realista


Publicada originalmente em O Globo, Segundo Caderno
Quinta-feira, 1º de novembro de 2012, página 6

Patrícia Kogut

Nem a desconstrução do ator para a posterior montagem de um personagem — como em “A Pedra do Reino” e “Capitu” — nem um vocabulário estético fabuloso, quase totalmente inventado, onírico — como em “Hoje é dia de Maria”. Em “Suburbia”, Luiz Fernando Carvalho faz um voo rasante sem encostar no chão, mas próximo o bastante do realismo para produzir uma reflexão sobre questões objetivas do dia a dia e abordar temas delicados, como o racismo e a opressão social. A série que estreia hoje, às 23h30m, na Globo, é dele, de Paulo Lins (“Cidade de Deus”) e de Carla Madeira, e serve a diversos espectadores. Na camada mais evidente, acompanhamos a saga de Conceição (Érika Januzza), do interior de Minas ao Rio de Janeiro.

Criança, Conceição (Débora Nascimento) vive em situação precária com a família que trabalha em minas de carvão. É uma terra que poderia ser um dos cenários de “Sagarana”, mas essa citação a Guimarães Rosa se encerra logo, porque a menina parte, primeiro a cavalo, depois num trem. Desembarca com um recorte de revista com a foto do Pão de Açúcar na mão. São imagens muito bonitas e cheias de referências explícitas aos contos de fadas. Conceição encontra uma capital idílica (quando enxerga o Pão de Açúcar considera que ele é “igualzinho” ao da foto), mas as idealizações logo se rompem. Ela precisa sobreviver à internação numa instituição de menores, ao racismo — mesmo aquele que não se reconhece como tal, o da intelectual que contrata a menina, ainda criança, como babá —, e à pobreza. “Suburbia” é portanto também uma saga darwinista, e sua heroína, uma vitoriosa.

Carvalho trabalhou quase que exclusivamente com atores pouco conhecidos do público da televisão. Esse esforço serviu para driblar aquilo que é encenado, distante da palavra dita sem artificialismos. Não há sotaques, empostação ou pose. O elenco é de alta qualidade, sem exceções. Nem por um minuto, o espectador duvida da verdade do que está vendo na tela. A emoção que todos transmitem é tão sincera que Fabrício Boliveira, único ator profissional do elenco principal já visto em telenovelas, adere ao tom dos demais, não o inverso. No geral, todos se saem bem, mas destacam-se nos capítulos iniciais Rosa Marya Colin, Haroldo Costa, Artur Bispo (preste atenção a ele, que interpreta Lorival), Ana Pérola, Serafina Terezinha e Dani Ornellas.

“Suburbia” é ambientada nos anos 1990 e, por isso, se distancia deste Rio de hoje, do qual os cariocas se orgulham tanto a ponto de perder de vista as mazelas que continuam castigando a cidade. É a década em que houve a chacina da Candelária, quando ninguém sonhava com as UPPs, e o incensamento dos subúrbios era algo impensável. Não faz tanto tempo, mas a distância é suficiente para que se medite sobre as regiões isoladas pelas diferenças sociais. Mesmo com uma fotografia linda, Carvalho não estetizou a pobreza e a violência de então, mães da pobreza e da violência que ainda temos hoje.

A série vai fundo ainda nas estruturas familiares elásticas, no acolhimento das famílias do subúrbio em cujo colo sempre cabe mais um. Essa generosidade se reflete na arquitetura dos puxadinhos, dos quintais e de outras áreas de convivência. Carvalho e Lins buscaram também na religiosidade brasileira a construção desse trançado social. “Suburbia” ilumina a convivência entre o catolicismo, o candomblé e as igrejas evangélicas em plena expansão. A série visita as ideias freyrianas de democracia racial e ao mesmo tempo faz uma crítica social ácida. Exclusão e miscelânea, eis as contradições presentes com peso igual no programa.

Em entrevista, Carvalho disse que nesse trabalho experimentou um “despojamento novo”. É verdade. A série é lírica, tem o olhar do fotógrafo-poeta. Não há efeitos de luz, mas sim a visão do diretor que enxerga e oferece um colorido que escaparia ao simples documentarista. Ela é cheia de recados para a própria TV. Um deles, talvez o principal: está na hora de ela reencontrar a comunicação direta, a câmera na mão, a simplicidade.

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