Ambientadas em comunidades, ‘Salve Jorge’ e ‘Lado a lado’ acendem debate sobre as favelas nas novelas

 

Autores, sociólogos, atores e pesquisadores analisam como a realidade nos morros é retratada na ficção


Publicado originalmente no site www.oglobo.globo.com/revista-da-tv

Terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Natalia Castro e Maria da Luz Miranda

Os jingles da ambulante Adriana Evangelista são bem familiares aos moradores do Morro do Alemão, onde ela nasceu e vive há 35 anos e, hoje, vende salgados. Desde a estreia de “Salve Jorge”, a moça vem se dividindo entre a comunidade real — pacificada em março — e a da ficção, retratada na trama das 21h da Globo. Sua presença em cena, com suas empadinhas, é uma das apostas da autora Gloria Perez para dar ao Alemão cenográfico um aspecto verossímil.

Ao mesmo tempo, os autores João Ximenes Braga e Claudia Lage, de “Lado a lado”, buscam meios para narrar de forma crível, às 18h, o surgimento e a evolução do Morro da Providência — a primeira favela carioca, no começo do século XX. No ar, ambas as novelas levam para a ficção dois momentos historicamente distintos, e reacendem a discussão sobre como as favelas vêm sendo representadas na teledramaturgia. Pesquisadores, sociólogos e ativistas apontam acertos e erros neste recorte da vida real na TV.

Em “Lado a lado”, Ximenes explica que procurou, com os personagens, representar todos os acontecimentos da época.
— Mostramos a efervescência criativa e o senso de comunidade com Zé (Lázaro Ramos), Isabel (Camila Pitanga), tia Jurema (Zezeh Barboza) e seu Afonso (Milton Gonçalves). Foi no morro da Providência e na Gamboa que o samba de roda tomou novas formas e abriu espaço para Noel Rosa, Paulinho da Viola e, claro, a bossa nova— pontua: — Naquela época, as favelas estavam longe da explosão de violência que viria algumas décadas depois, mas já eram esconderijos de bandidos. Caniço (Marcello Melo Jr.) representa isso. O descaso das autoridades, das elites e da classe média para o que acontecia ali era total.

A dupla de autores das 18h foi fundo na história do Brasil e do Rio para esmiuçar a realidade daquela época, e não só no texto. O cenógrafo Fabio Rangel reconhece que o trabalho foi difícil, por conta dos poucos registros sobre o local. Além dos livros, a equipe se apoiou em relatos de quem vivia lá.
— Os barracos eram de madeira; os móveis, de alvenaria. A luz elétrica não era acessível a todos, e não tinha água. Desnivelamos o terreno e fizemos até uma vala — contextualiza ele, contando que a montagem dos cenários foi complicada: — Os operários queriam fazer tudo certinho. Expliquei que, na época, não era assim. Os moradores não tinham pregos com facilidade, a madeira era colocada para tapar os buracos. Quando chove, vira tudo uma lama. E devia ser assim mesmo. Calor, mosquitos...

Além do calor, a presença de mosquitos — principalmente os da dengue — continua sendo um problema em muitas comunidades. Estes e outros detalhes não escaparam ao olhar da equipe de cenógrafos de “Salve Jorge”. Para conseguir captar com exatidão todas as minúcias da vida no Alemão, a equipe fez várias visitas ao complexo, enriquecidas com depoimentos de moradores e fotos. Cerca de 4 mil, diz a cenógrafa Juliana Carneiro.
— A minha sensação é de que, durante muito tempo, ninguém chegava a certos lugares, a não ser quem morasse lá. Era importante que o cenário ficasse bem realista. E no estúdio também: já que a casa não pode ser bonita por fora, o investimento está em um geladeira duplex, um TV de 42 polegadas, um sofá confortável — analisa Juliana.

Na cidade cenográfica de 1800 metros quadrados há barraquinhas de frutas, carrocinhas, butique, costureira, chaveiro e lan house, além de vendinhas como o botequim do Clóvis (Walter Breda) e a loja de Galdino (Francisco Carvalho). As paredes são cobertas com panfletos, fios e pichações. Cachorros passeiam, enquanto figurantes jogam buraco na praça.
Na pele de Morena, protagonista da trama, Nanda Costa se impressionou ao pisar no Alemão cenográfico.
— Lembro que até brinquei que teria que buscar meu carro no Projac quando saísse dali — diverte-se, contando que realmente teve a sensação de estar na comunidade real, onde também gravou cenas: — Essa vivência na cidade cenográfica faz com que a gente compreenda o comportamento de quem vive no morro. Morena costuma dizer: “Pacificação é muito bom, mas a gente está endividada”.
Dira Paes, que vive a doméstica Lucimar, mãe de Morena, crê no papel social dos folhetins.
— A novela tem a dupla função de mexer não só com o sentimento, mas com a cidadania. Gosto muito de ver a realidade misturada com a ficção — diz a atriz.

Para dar um tom humano aos personagens, Julia Laks, pesquisadora da trama, também foi ao Alemão. Ela queria entender o que as pessoas esperam após a pacificação:
— Foi muito importante redescobrir uma parte do Rio a que a gente não tinha acesso.
A forma de expor esses dramas, contudo, envolve fatores que ainda geram discussão. O autor e doutor em Teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana pela USP Mauro Alencar acredita que o novelista pode lançar mão da licença poética para contar sua história:
— Em “Lado a lado”, onde há o compromisso histórico de encenar a ocupação dos morros cariocas, é imprescindível que o tema seja redigido de forma realista. No entanto, novelas como “Salve Jorge” podem povoar as comunidades ficcionais com alguns personagens e situações pitorescas, o que, porém, ainda fica distante do caricatural.

Para a socióloga Bianca Freire Medeiros, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV), a novela quebra o dogma da diferença entre a cultura da favela e a do asfalto:
— O lado bom dessa exposição é que a TV entra num debate que já vem sendo travado desde o filme “Cidade de Deus” (2002) e da série “Cidade dos homens”. A representação que as favelas têm nas novelas não têm precedentes.

O sociólogo Dario Caldas observa que as novelas têm uma relação dupla e dúbia com o mundo real.
Quando interessa, a discussão é levada a sério. Quando não, a obra frisa que não tem qualquer compromisso com a veracidade dos fatos, diz ele.
— Não acho que o brasileiro seja preconceituoso, ou que o espelho incomode. Talvez ele não se reconheça ali. O Alemão pode ser a cara do Rio, mas não a do Brasil. A favela não é a cara da nova classe que vem surgindo. Considero um equívoco alguém achar que está abordando a classe C simplesmente porque mostra uma favela na trama — rechaça ele, diretor do Observatório de Sinais, agência especializada em pesquisas e tendências.

Não é preciso voltar muito no tempo para perceber que, já há alguns anos, as favelas vêm ganhando espaço definitivo nas tramas televisivas, sejam elas novelas ou séries como “Cidade dos homens”, de 2002, e “Antonia”, em 2006. De 2011 até agora, estiveram no ar a Comunidade dos Anjos, em “Malhação”; o Covil do Bagre, em “Aquele beijo”; e o Borralho, em “Cheias de charme”. O recente redesenho da sociedade brasileira e o crescimento da chamada classe C, por sua vez, estão contribuindo para que o morro tenha cada vez mais lugar na televisão.

O pesquisador Mauro Alencar reforça que a representatividade das comunidades na sociedade atual tem feito aumentar suas aparições na TV. Mas o movimento, ao contrário do que muitos podem pensar, começou há mais de 30 anos, ainda que timidamente.
— Uma das primeiras vezes que uma favela ou comunidade aparece na Globo está em “Bandeira 2”, de 1971. Tucão (Paulo Gracindo) era um bicheiro da Zona Norte e mantinha pontos de contravenção em comunidades — relembra Mauro.

Se antes as favelas eram mostradas en passant, a história começou a mudar de 15 anos para cá. Em 2002, Aguinaldo Silva explorou o tema em “Senhora do destino”. Depois, em 2007, voltou ao assunto em “Duas caras”, com a Portelinha, fundada pelo líder comunitário Juvenal Antena (Antônio Fagundes). Ainda no mesmo ano, Marcílio Moraes fez sucesso com sua “Vidas opostas”, na Record. A trama mostrava o romance entre o milionário Miguel (Léo Rosa) e a guia Joana (Maitê Piragibe), moradora do ficcional Morro do Torto. Para Marcílio, a novela foi responsável por quebrar inúmeros tabus na TV.
— Naquela época era raro ver favelados em telenovelas, a não ser em núcleos secundários, e geralmente tratados de maneira folclórica. E “Vidas opostas” rompeu tabus por demonstrar que havia grande interesse por parte do espectador em ver retratados, ficcionalmente, personagens e camadas sociais que estavam diariamente no noticiário.

O autor concorda que, para recriar uma comunidade na TV, não basta apenas copiar a realidade. É preciso humanizar os personagens para que o público se reconheça neles:
—É um processo mais profundo, que diz respeito ao ser-humano e permite que as pessoas das classes A,B, C ou F se identifiquem com o que estão vendo na tela.

Produtor cultural e idealizador de projetos voltados para jovens de comunidades do Rio de janeiro, do Alemão a Manguinhos, Marcos Vinicius Faustini é reticente quanto ao tipo de visibilidade dada às favelas na teledramaturgia e acredita que existam equívocos. Ao mesmo tempo em que ganha o imaginário dos brasileiros e demarca território como um dos ícones da cultura brasileira, o morador das comunidades é retratado como “carente e sem potência”, diz ele.
— Favelado não é só isso. A TV quer mostrar que está antenada com a nova configuração da sociedade brasileira, mas a centralidade ainda está no soldado. O pobre não tem subjetividade — ataca Faustini, idealizador da Agência Redes para Juventude.

Autora de “Escrito nas estrelas”, que teve cenas gravadas no Dona Marta, Elizabeth Jhin reconhece a dificuldade de se abordar a realidade das favelas na ficção. Ela própria confessa que ainda não se sentiu capaz de criar um núcleo exclusivo passado numa comunidade.
— Usei o morro para mostrar a decadência da família da Viviane (Nathalia Dill), fruto dos desmandos do pai. Ao perder tudo o que tinham, foram forçados a morar na comunidade onde ele, incorrigível, se juntou a bandidos — explica ela, dizendo ter medo de soar caricata. — É uma vida muito dura que, ao meu ver, acaba sempre mostrando um falso lado romântico ao ser transportada para a telinha.

O argumento da autora é reiterado por Jorge Barbosa, coordenador geral do Observatório das Favelas. Para ele, as favelas não devem ser marcadas apenas pela violência — a exemplo de filmes como “Tropa de elite” — e nem pela romantização, caso das novelas.
— Favela é lugar onde as pessoas sambam e dançam, mas é também lugar de desigualdade, de desconforto ambiental, de baixa escolaridade. O morador, por sua vez, se identifica com a paisagem, mas não com o personagem. Não defendo o naturalismo, mas é importante manter uma proximidade com a realidade — prega.

Apesar das ressalvas, a socióloga da FGV Bianca Freire Medeiros, autora do livro “Gringo na laje”, diz que a “maré é boa” e que a favela vem ganhando uma relevância inédita na teledramaturgia brasileira. Consolidada como expressão cultural, ela já define o Brasil, assim como o futebol e o carnaval.
— Não é apenas o gringo que reconhece o território. Aos olhos da sociedade brasileira, a favela também é outra. Uma mudança que vem para o bem e para o mal — diz a socióloga. — O bom é que incorporamos outros elementos a este repertório da favela. Existe criatividade, superação e resistência. A favela é um lugar de acontecimento.

Para o sociólogo Dario Caldas, é natural que a TV aposte nestes dramas. Todavia, a generalização é perigosa, visto que a classe média do país é muito mais complexa. Embora as favelas estejam cada vez mais em voga, não há exatamente uma necessidade de exploração das comunidades na televisão brasileira, acredita o sociólogo Dario Caldas.
— A TV precisa conversar com a realidade fazendo ficção. Não acho que as favelas devam ser mostradas obrigatoriamente. Mostrar o quê, afinal? O Brasil é mais complexo do que isso. Acho que seria mais interessante mostrar o que é ser classe média neste Brasil contemporâneo — argumenta ele.

Na opinião de Mauro Alencar, é provável que as comunidades continuem sendo assunto nas tramas. Mas não se trata de uma regra ou condição imposta:
— Acho que é um reflexo natural de nossos tempos.

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