Lançada em DVD, ‘O bem-amado’, primeira novela em cores da TV, completa 40 anos em 2013

 

Trama preserva a sua relevância e a força das críticas ao Brasil dos anos 1970


Publicado originalmente no jornal O Globo, Revista da Tv, pág. 12

Domingo, 16 de dezembro de 2012

Zean Bravo

Odorico Paraguaçu, o prefeito demagogo e corrupto que tinha como grande obsessão inaugurar o cemitério de Sucupira, surgiu no teatro e chegou ao cinema. Mas fez sua história na TV. O emblemático personagem de Paulo Gracindo, um dos muitos tipos marcantes criados por Dias Gomes para “O bem-amado”, está no centro da ação de um dos folhetins mais importantes de todos os tempos da TV Globo. Lançada em DVD pela Globo Marcas — numa caixa de dez discos com mais de 36 horas de duração —, a trama, que completa 40 anos em 2013, foi a primeira telenovela em cores da TV brasileira e a primeira a ser comercializada para o exterior.

Adaptada da peça “Odorico, o bem-amado e os mistérios do amor e da morte” (1962), a novela de Dias Gomes — autor morto em um acidente de carro em 1999, que completaria 90 anos no último dia 19 de outubro — estreou em 1973, às 22h. E mudou os rumos do gênero.
— “O bem-amado” surge num período turbulento da política, em plena ditadura militar. Dias Gomes criou um estilo de novela que representava o Brasil em todo o seu atraso social, político e econômico. Fincou o realismo na teledramaturgia. Abandonou o clássico protagonista romântico para centrar a ação em Odorico Paraguaçu. E deslocou-se do realismo para uma farsa sociopolítica, um gênero altamente inovador na teledramaturgia brasileira — contextualiza Mauro Alencar, doutor em Teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana pela USP.

O pesquisador enxerga ainda outros méritos na novela.
— Apesar da tensão dramática, que não economizava nas questões sociais mais graves do Brasil, Gomes criou um cenário alegórico e bem-humorado, abrindo uma brecha para criticar a ditadura e os políticos, mesmo que indiretamente e por metáforas — completa Alencar.

Mauro é coautor de um dos livros que também tratam da importância da novela escrita por Gomes. Lançado recentemente, “Um século de Paulo Gracindo — o eterno bem-amado” (Editora Gutenberg, 275 páginas), foi escrito pelo pesquisador com o ator Gracindo Junior, filho de Paulo. Para os dois, o folhetim serviu para consolidar o sucesso de Paulo, que já havia se destacado em “Bandeira 2” (1971), outra trama de Gomes.
— Não tem uma pessoa que fale sobre o meu pai comigo e que não cite Odorico. Esse personagem glorificou o Paulo Gracindo. É um trabalho com quase 40 anos. Muitas gerações não viram, mas a obra mantém sua força dramatúrgica e ainda é relevante historicamente — afirma Gracindo Junior.

A novela de 178 capítulos rendeu ainda uma série, produzida entre 1980 e 1984, com o mesmo elenco. Em 2010, Guel Arraes lançou um filme com Marco Nanini no papel de Odorico, depois de encenar a peça em 2007.
“O bem-amado” é a sétima novela comercializada em DVD. Para 2013, a Globo Marcas prevê o lançamento “Selva de pedra”, escrita por Janete Clair, novelista que foi casada com Dias Gomes. Amigo do autor desde 1947, Lima Duarte é categórico:
— Em minha opinião, “O bem-amado” foi a melhor novela que o Brasil já teve. Foi uma trama divertida e bem brasileira.

O ator classifica “O bem-amado”, na qual interpretou o matador Zeca Diabo, como uma guinada para sua carreira.
— Eu tinha dirigido “Beto Rockfeller” (1968) para a TV Tupi. E fui chamado pela Globo para dirigir “O bofe” (1972). A novela não funcionou, e pensei que fosse sair da emissora. Foi quando Boni (superintendente de produção e programação da Globo à época) me disse que eu poderia fazer algo como ator. Dias me ofereceu um personagem que ficaria apenas cinco capítulos e topei. Mas Zeca fez tanto sucesso que não saiu mais. E ainda matou Odorico no final! — destaca Lima.

Dirigida por Régis Cardoso com supervisão de Daniel Filho, “O bem-amado” exigiu um novo olhar de sua equipe.
— Não sabíamos de todas as dificuldades que a TV a cores traria. Existia a expressão “rasgar a imagem”. Era quando na imagem aparecia algo como se fosse um “rabo de cometa”, que você mexia e ficava uma sombrinha atrás da pessoa. Objetos ou pessoas claras poderiam “rasgar a imagem”, dependendo do contraste — explica Daniel Filho.

O diretor recorda que foi chamado ao set por Régis Cardoso logo no início da novela.
— Régis considerou impossível realizar uma cena: era Ida Gomes (uma das irmãs Cajazeiras) subindo numa escada com o Paulo. Quando ele chegou perto da perna de Ida, a perna dela “rasgava”. Paulo tinha a pele bem morena e a Ida, a pele clarinha. A solução foi pedir para o Paulo se afastar um pouco da escada para diminuir o contraste — detalha.

Emiliano Queiroz, o icônico Dirceu Borboleta, secretário pessoal de Odorico, lembra bem do tal episódio envolvendo a perna da colega. Apaixonadas pelo prefeito, as irmãs Cajazeiras Dorotéia, Dulcinéia e Judicéia era interpretadas, respectivamente, por Ida, Dorinha Duval e Dirce Migliaccio.
— Com a cor, descobrimos novos recursos de interpretação. Eu começava a cena pálido e ficava com o rosto vermelho — acrescenta Emiliano, dizendo que Dirceu é um dos seus personagens mais marcantes: — Ficou no inconsciente.

Protagonista da sequência final da novela, na qual seu personagem, o pescador Zelão, salta da torre da igreja e voa sobre Sucupira com as asas que ele próprio construiu, Milton Gonçalves aponta a mensagem política do folhetim.
— Em plena ditadura, Zelão dizia que quem tem fé, voa. Ali também o Dias Gomes lança o realismo fantástico nas novelas — ressalta Milton.

Filha do dramaturgo, a escritora Mayra Dias Gomes comenta a importância de “O bem-amado”. Ela organizou com sua irmã, Luana, entrevistas concedidas pelo pai para o recém-lançado livro “Dias Gomes” (Azougue Editorial, 208 páginas):
— “O bem-amado” é uma obra atemporal. Infelizmente, continua sendo um retrato dos políticos brasileiros até hoje.

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