Rede de intrigas: a novela do tráfico de mulheres no Brasil

 

Novela de Glória Perez abre discussão à cerca do tráfico de mulheres

Publicado originalmente no site: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima

Domingo, 9  de dezembro de 2012, 08h04

Eliane Trindade
Simone Borges, 25, saiu de Goiânia rumo à Espanha, em 1996. Pretendia trabalhar num bar e juntar R$ 6.000 para seu enxoval de casamento. Ao chegar a Bilbao, viu-se obrigada a se prostituir. Pediu que a família avisasse a polícia.

Kelly Fernanda Martins, 26, deixou Guadalupe, na zona norte do Rio, para tentar a sorte como garçonete em Israel, em 1998. Na escala, em Paris, teve o passaporte confiscado pela máfia russa. Relatou ter sido forçada a manter relações com dez homens por dia, em jornadas de até 13 horas.

As duas jovens jamais retornariam. O corpo de Kelly foi encontrado na rua, em Tel Aviv. O atestado de óbito apontou overdose de drogas ou de remédios como "causa mortis". Para a família: assassinato. Já Simone morreu no hospital, em decorrência de pneumonia. "Minha filha era saudável, ela morreu envenenada para não denunciar o esquema", diz João Borges, 77.

Simone e Kelly se converteram em símbolo da luta contra o tráfico de mulheres brasileiras para fins
de exploração sexual no exterior. Ambas renasceram na tela da Globo, fundidas na personagem Jéssica (Carolina Dieckmann), da novela das nove "Salve Jorge", de Gloria Perez.

Foi a teledramaturga quem escolheu o tráfico de mulheres como foco do "marketing social" da vez, como são conhecidas as campanhas que a Globo atrela a suas tramas.

"Quando comecei a dizer que ia escrever sobre tráfico de pessoas, ouvi gente muito bem informada dizendo que isso era lenda urbana", disse a autora em entrevista à Folha.
Não só entre "gente muito bem informada", mas até mesmo entre especialistas, não há consenso sobre a questão. Fernando Gabeira, que quando era deputado federal pelo PV-RJ apresentou projetos ligados aos direitos das prostitutas, resume os dois lados da moeda.


"Existem brasileiras em situação de semiescravidão nos países ricos", explica ele, "e existem também muitas prostitutas --travestis e mulheres-- vivendo lá fora de forma estável, sustentando suas famílias aqui e mandando divisas para o Brasil". Ou seja, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

"O problema é que misturam tráfico e prostituição", diz Gabriela Leite, socióloga e prostituta aposentada, como faz questão de se apresentar. Gabriela comprou briga com a Daslu, ícone do consumo de luxo, ao lançar a Daspu, grife ligada à ONG que preside, a Davida. "Não conseguem ver uma prostituta adulta como uma trabalhadora que emigrou, mas, sim, como escrava", afirma. Em 2009, ela publicou suas memórias, "Mãe, Filha, Avó e Puta" (Objetiva).

Para Gabriela, preconceito, xenofobia e interesses dos países ricos em fechar suas fronteiras são o pano de fundo da luta antitráfico: "Com a crise, a Europa não quer mais estrangeiras. Existe hipocrisia moral em relação a quem ganha dinheiro com sexo".

Gabeira vai na mesma direção: para ele, a questão diz respeito à "economia libidinal", na qual os países importam "cotas" de travestis e de prostitutas. "Como se trata de um serviço, a oferta de sexo é regulada pelas forças de mercado. Com a crise europeia, também cai o serviço sexual."

BULLSHIT

No relatório da ONU Globalização do Crime (2010), o Brasil aparece como o maior fornecedor de escravas sexuais da América Latina. "Bullshit", reage o antropólogo americano Thaddeus Blanchette. Ligado a ONGs como a Davida, ele é professor na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Papo furado", traduz.

O antropólogo toma o conceito emprestado do filósofo Henry Frankfurt. "É a indiferença em relação a como as coisas realmente são", explica. "Não há preocupação com a verdade. Um 'bullshitter' pode estar falando uma verdade ou uma mentira, mas isto é secundário diante do seu principal objetivo, que é impressionar e persuadir uma plateia."

Seus detratores o acusam de insensibilidade e de tentar "desorganizar a unidade em torno da defesa dos direitos humanos", como diz Maria Lúcia Leal, pesquisadora da UnB (Universidade de Brasília) que diz já ter sido tratada aos berros por Blanchette. "Gostaria que fizéssemos um debate sério, mas não com tal violência." Ele admite se exaltar com os adversários. "Eles me tiram do sério."

Há 25 anos no Brasil, onde conheceu a mulher, a antropóloga Ana Paula Silva, da Universidade Federal de Viçosa (MG), ele conta que seu "biotipo" de gringo ajuda a se aproximar de seu objeto de estudo: turistas sexuais. Já ela, negra, conta não ter dificuldades para circular no seu foco de pesquisas, pontos de prostituição lendários, como a antiga boate Help, que fez história em Copacabana.

Os dois uniram forças para contestar a principal base das políticas de combate ao tráfico de mulheres. Recentemente, publicaram artigo na revista "Dialectical Anthropology", da New School for Social Research, com título para lá de provocativo: "Sobre papo-furado e o tráfico de mulheres: empreendedores morais e a invenção do tráfico de pessoas no Brasil".

"Essa questão do tráfico de mulheres no Brasil é uma grande fantasia", disse ele. "Tráfico pressupõe ser dominada, ter o passaporte retido. Não digo que não existe, mas é numa escala muito menor do que se alardeia. O que existe são mulheres que foram trabalhar como prostitutas no exterior por conta própria, mas vão e voltam."

O Protocolo de Palermo (2004), que baliza ações contra esse tipo de crime, define o tráfico como "o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso de força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade". Para os críticos, o texto enquadra toda prostituição, forçada ou voluntária, como forma de escravidão sexual.

O tema divide também as feministas. "De um lado, as abolicionistas, que entendem a prostituição como atividade degradante por reduzir a mulher a objeto. Portanto, é exploração sexual", explica a advogada Monique Xavier, que estudou o tema em seu mestrado. Do outro lado está o movimento feminista transnacional, que defende o direito das mulheres a dispor do seu corpo.

"Para nós, governo, o tráfico independe do consentimento inicial da vítima", disse à Folha a ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. "Pressupõe alguma organização e a existência de coerção, não necessariamente física, mas também psicológica e econômica." Segundo ela, "é responsabilidade do nosso país alertar sobre as redes criminosas e apoiar as pessoas que queiram se livrar dessa condição".

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