‘House of cards’ e o futuro da televisão



Publicado originalmente no site: http://oglobo.globo.com/cultura

Terça-feira, 19 de fevereiro de 2013, 10h40

André Miranda e Eduardo Rodriges

Por trás da busca por poder do deputado Frank Underwood não estão apenas cargos políticos, troca de favores e um complexo jogo de influência em Washington. Por trás do sucesso de Underwood, o protagonista da série “House of cards” vivido pelo ator Kevin Spacey, está um debate sobre quais modelos para produção e distribuição de conteúdo vão predominar na TV nos próximos anos.

O que Underwood, “House of cards” e a empresa produtora da série, a Netflix, representam hoje é a possibilidade de uma evolução no mercado de TV por assinatura.Um thriller político passado nos bastidores do poder, “House of cards” foi disponibilizado pela Netflix em 1o de fevereiro e imediatamente se tornou um sucesso com resenhas positivas e comentários de analistas sobre sua estratégia de exibição.

Importantes publicações passaram a tratar do assunto. A revista eletrônica “Salon” pôs no ar, no mesmo dia, um artigo intitulado “Como a Netflix está transformando os espectadores em marionetes?”. Na “New Yoker”, três dias depois, o título foi “Netflix e o declínio do cabo”. Já o jornal “The New York Times” publicou no dia 5 a reportagem “Lançamento de 13 episódios de ‘House of cards’ redefine o alerta de spoiler”.

Acontece que o projeto de “House of cards” já nasceu de um jeito diferente. Quando querem fazer pesquisas para saber o gosto de seus consumidores, as empresas tradicionais de TV precisam recrutar um batalhão de funcionários para ligar para as casas das pessoas ou reunir um grupo de espectadores numa sala. Alguns respondem às perguntas, outros não; alguns falam a verdade, outros não; mas é daí que sai o resultado que vai balizar o planejamento para próximos produtos.

Com a Netflix — e também o Now, o Telecine Play, o HBO Go, o Crackle e o Muu, todos serviços digitais de streaming (transmissão em tempo real) ou Video on Demand (VoD, transmissão à la carte) disponíveis no Brasil —, a pesquisa é feita pelo próprio uso do controle remoto (ou do mouse).

Nessas transmissões, é possível saber quando alguém pausa um filme, quando repete uma mesma cena e que sequências de uma série prefere pular. Dá para saber, ainda, quais programas agradam um determinado tipo de espectador. Cruzando essas informações estatísticas com milhares de usuários chega-se, portanto, a uma boa ideia dos hábitos de quem vê TV.

— Temos a possibilidade de monitorar as ações de nossos assinantes na Netflix como uma forma de melhorar a experiência deles com o serviço — diz Ted Sarandos, executivo-chefe de conteúdo da Netflix. ­— Por exemplo, se notarmos que diversos espectadores param de assistir a um episódio ou pausam um filme ou capítulo no mesmo trecho constantemente, nossos engenheiros imediatamente verificarão se há um problema de sincronização no título ou uma falha técnica. Isto acontece porque queremos tornar a experiência de nossos usuários a melhor possível.

Mas o uso do cruzamento de dados não se limita ao controle técnico. “House of cards”, por exemplo, é uma refilmagem de uma série britânica da BBC dos anos 1990 que já era exibida pela Netflix. A partir dos hábitos de busca de seus clientes, a empresa sabia, de antemão, que os fãs da série costumavam assistir a filmes com Kevin Spacey. Sabiam, ainda, que David Fincher era um diretor admirado pela turma. Não deu outra: os dois foram chamados para o projeto.

— Na plataforma do Now, a gente desenvolve projetos para monitorar hábitos de consumo. A gente sabe quais produtos são mais vistos e pedimos para as programadoras conteúdos específicos — explica Fernando Magalhães, diretor de programação da Net, a empresa de TV a cabo responsável pelo Now. — Mas o monitoramento é feito por dados agregados. Você consegue saber se um filme vendeu bem num estado e não em outro. Você não usa o dado individual de um espectador.

Porém, mesmo com a garantia da privacidade, a discussão que o modelo de “House of cards” desperta é parecida com o que vem ocorrendo há alguns anos com o monitoramento de hábitos feito pelo Google e pelo Facebook. Enquanto, por um lado, melhora-se os serviços; por outro insinua-se que essa quantidade de informações nas mãos das empresas pode significar um tipo de limitador das opções do espectador. A pergunta é: a TV controla você ou se é você quem controla a TV?

— O que se discute é a possibilidade de um Big Brother, na definição antiga do termo. Mas eu não vejo como controlar o incontrolável — avalia Marco Altberg, presidente da Associação Brasileira de Produtores Independentes de Televisão (ABPITV). — Os hábitos mudaram. Eu li há um tempo um teórico reclamando que não existia mais o direito ao esquecimento depois da internet. Ele citava um exemplo de uma mãe de família nos EUA, que viveu a geração de sexo, drogas e rock’n’roll, e que teve problemas quando seu filho achou fotos antigas dela na rede. Isso hoje é inevitável. Você não tem como apagar o passado, e seus passos estão sendo vigiados o tempo todo. O seu celular tem localizador, o carro tem GPS. São ferramentas que podem ter um uso para o bem ou para o mal.

Além disso, a possível evolução proposta por uma série como “House of cards” envolve outros aspectos da cadeia do audiovisual. A palavra “janela” normalmente passa a ideia de abertura ou passagem, mas no mundo do entretenimento também pode significar uma limitação — é o tempo que o espectador espera entre episódios de uma série ou o tempo para um filme saltar do cinema para o DVD, do DVD para a TV a cabo e daí para a TV aberta.

Assim, a indústria busca extrair o máximo de lucro possível em cada uma dessas mídias, dando uma distância entre cada lançamento e transformando cada nova exibição em um evento — comentado nas salas de jantar, mesas de boteco e hoje também nas redes socais.

Mas esse sistema foi perdendo sustentação a cada salto da tecnologia, com a indústria sendo obrigada a se adaptar diante do gravador de VHS, do gravador de DVD e, sobretudo, de toda a facilidade de distribuição e reprodução criada pela internet e bem representada pelo YouTube.

Por mais que boa parte do conteúdo encontrado na internet ainda seja distribuído de forma ilegal — mesmo no YouTube —, a influência sobre a forma como as pessoas assistem a TV já pode ser percebida.

— Se considerarmos a proliferação de canais e opções para assistir a programas e filmes instantaneamente ou em qualquer outro momento, a maneira como os espectadores lidam com a televisão definitivamente está mudando — afirma Ted Sarandos.

Com “House of Cards”, a Netflix acabou com a janela. Todos os seus 13 episódios foram lançados de uma só vez, para o espectador assistir como quiser. Essa decisão também foi tomada com base no comportamento do usuário, cada vez mais acostumado a assistir a séries em longas maratonas de vários episódios em sequência.

— Para a Netflix, o importante é oferecer aos nossos assinantes o controle sobre quando e onde eles assistirão ao conteúdo. Eles podem decidir se verão apenas um episódio de uma série como “House of Cards” ou “Breaking Bad”, ou se assistirão a diversos capítulos de uma vez só — completa Sarandos.

Hoje, não há limitação técnica para um filme ou série ser lançado ao mesmo tempo nos EUA e no Brasil. O único empecilho (nada simples) é a capacidade do mercado em se adaptar e tornar esse processo lucrativo. Séries muito populares, como “Game of Thrones”, já têm uma mesma data de estreia mundial, enquanto alguns blockbusters de Hollywood estreiam fora dos EUA antes do mercado americano, como ocorreu com “Os Vingadores”: em seu país de origem, foi lançado em 4 de maio, duas semanas após Brasil, Austrália e França.

— Essa distância, ou intervalo temporal, entre os países vai, sim, sumir. Já acontece com algumas estreias de cinema e na indústria automobilística. Essa tendência é mais de indústria e mercado do que cultural — explica Eugênio Bucci, professor da Escola de Comunicação e Artes da USP e autor de livros como “Brasil em tempo de TV” (editora Boitempo) e “A imprensa e o dever da liberdade” (editora Contexto). — Antigamente, as novelas eram exibidas antes em São Paulo, depois em Belo Horizonte e no Rio. A fita viajava de uma cidade para a outra de avião. Os parentes ligavam uns para os outros perguntando o que iria acontecer naquele capítulo. Mas a tendência histórica é a da unificação dos tempos.

Ted Sarandos vê a possibilidade de, num futuro próximo, filmes serem lançados na Netflix antes de chegarem aos cinemas. E quem sabe um dia séries de sucesso não poderão fazer o caminho inverso, com fãs assistindo a maratonas de “The walking dead”, por exemplo, na telona?

— Os modelos de distribuição nas indústrias do cinema e da televisão estão em constante evolução. Por isso, sempre haverá uma possibilidade para isso — diz Sarandos.

Mas qual efeito essa mudança vai causar no comportamento do espectador? Para muitos, é mais divertido assistir a séries junto com os amigos, comentar no dia seguinte, sem medo de estragar possíveis surpresas (os “spoilers”). A Netflix não revela dados de audiência de seus programas, então não se sabe quantas pessoas de fato viram “House of cards”. Assim, a resposta para o debate pode ser tão incerta quanto os rumos que a tecnologia vai tomar. Nem Frank Underwood, com toda sua soberba, sabe qual o futuro da TV.

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