Quando o reality show transforma o trabalho em espetáculo


Os reality shows de gastronomia fazem cada vez mais sucesso. E, ao converterem um lazer popular em vocação empreendedora, propõem à audiência uma visão normativa do trabalho e da vida profissional


Publicado originalmente no site:  http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1410

Maio de 2013

Marc Perrenoud, Sociólogo da Universidade de Lausanne


Nos últimos dez anos, apareceram na França diversos reality showsde culinária, comoMaster chef (TF1), Top chef (M6) e Un dîner presque parfait [Um jantar quase perfeito] (M6). Todos eles são jogos-concursos eliminatórios como À la recherche de la nouvelle star[Em busca da nova estrela] (M6). O vencedor ganha o super direito de entrar no espaço profissional: beneficia-se de uma exposição midiática importante, apesar de efêmera, ganha uma grande soma de dinheiro para abrir seu próprio estabelecimento, um estágio em uma empresa prestigiosa ou, no caso das emissões musicais, a produção de um disco e uma campanha de publicidade.

Em 2004, contudo, surgiu um programa de TV no Reino Unido que não demorou para fazer sucesso no mundo todo, com um conteúdo bem diferente. Ramsay’s kitchen nightmares [Pesadelos na cozinha de Ramsay] colocou em cena o famoso chef Gordon Ramsay. Durante uma semana, esse proprietário de restaurantes estrelados, autor de livros de cozinha e protagonista de coleções de vídeos sobre essa temática, se transforma nocoach (capacitador) de um dono de restaurante em dificuldades. Após alguns anos de produção no Reino Unido, o programa e seus heróis atravessaram o Atlântico para uma versão norte-americana (2008-2010) e em 2011-2012 inspiraram os primeiros episódios de um avatar francês transmitido pelo canal M6, desta vez com o chef Philippe Etchebest no papel de coach.

O apetite dos reality shows por emissões de coaching (capacitação/treinamento) é conhecido, e programas desse gênero constituem um grupo à parte. Em geral, porém, trata-se de life coaching (capacitação para a vida), cujos objetivos variam entre ensinar a perder peso, vestir-se, educar as crianças, limpar e decorar a casa, vender ou comprar a própria residência etc. Mas, naquele caso, o programa avança para o pro coaching: Ramsey não aconselha amadores talentosos (Master chef) nem jovens no início da carreira (Top chef), e sim profissionais em plena atividade.

Mais do que um espaço de trabalho como outro qualquer, o restaurante é um terreno perfeito para transformar em espetáculo aquilo que Everett C. Hughes chamava de “dramaturgia social do trabalho”, na metáfora teatral cara aos sociólogos interacionistas: 1. a sala é uma cena onde profissionais e clientes desempenham um papel a partir de um roteiro benfeito, enquanto as cozinhas são bastidores onde a câmera penetra para mostrar o outro lado da mesa.

Nesse espaço de trabalho se desenrolam atividades espetaculares (cada pedido é uma prova de técnica, rapidez e eficácia). Os agentes do processo se relacionam como se fossem uma família – chamam-se por apelidos, gritam, xingam: comportamentos em geral reservados à esfera da intimidade –, o que possibilita ao coach se lançar em uma psicoterapia selvagem e lacrimosa. Enfim, o objeto mesmo do trabalho em restaurantes se ajusta perfeitamente às exigências do reality show, já que comer, preparar refeições e ir a um estabelecimento como esses são experiências quase unanimemente compartilhadas e ao mesmo tempo remetem a questões vitais ligadas ao corpo e ao paladar.

O Sindicato Norte-Americano dos Roteiristas de Audiovisual publica em seu site textos de alguns membros que explicam como as histórias são fabricadas pelos reality shows e como funciona o interesse da indústria audiovisual em explorar a mão de obra gratuita e dócil formada por um público que joga esse jogo de forma benevolente. 2.  Assim, em Kitchen nightmares, os clientes-espectadores-atores participam ativamente do programa, contando à câmera suas impressões e, ao mesmo tempo, avaliando e sancionando as ações dos concorrentes de forma incisiva e “democrática” em cada etapa da narração.

Algumas precisões se impõem em relação ao esquema narrativo dessas emissões. Um restaurateur (proprietário e/ou cozinheiro) recebe, por demanda própria ou de seus assistentes, a visita do chef. Este passa uma semana no estabelecimento para ajudar os protagonistas a identificar os problemas que os ameaçam e remediá-los, com a finalidade de alcançarem o sucesso. Durante todo o episódio, a montagem cria referências temporais, constrói uma narração linear, dia após dia, serviço após serviço.

Gritamos, insultamos, ameaçamos

Primeira sequência: chegada do chef Ramsay ou Etchebest, que permanecem no salão para degustar alguns pratos e identificar imediatamente os maiores problemas (qualidade da comida, serviço, decoração etc.). Segunda sequência: contato com o restaurateur (cozinheiro e/ou patrão) a ser “capacitado”, interrogado pelo chef de forma educada. Os problemas são interligados: baixa qualidade dos produtos e falhas na preparação, cozinheiros e serventes ultrapassados, testemunhos “ao vivo” de clientes descontentes etc. Quarta sequência: a crise; o enfrentamento entre o chef coache o restaurateur a ser “capacitado”. Gritos, insultos, ameaças físicas e até prantos.

As etapas 3 e 4 se repetem ad nauseamaté o restaurateur chegar ao fundo do poço e recobrar o ânimo, ou melhor, renascer. Na quinta sequência, as soluções são colocadas em prática: ser mais autoritário, ou mais amável, em relação à equipe, simplificar o cardápio, abandonar o “tudo congelado”, servir com um sorriso no rosto etc. As melhorias imediatas são também submetidas à aprovação dos clientes-espectadores-atores.

Nas versões norte-americana e francesa, uma sequência final mostra a última etapa do processo de mutação: a produção do programa oferece a renovação do estabelecimento, da cozinha ao salão. Essa transformação marca o fim do ciclo e materializa a transformação interior de seus protagonistas. É também uma forma de retribuir pelos serviços prestados, às vezes caricaturais: a versão norte-americana de Kitchen nightmares leva à telinha restaurateurs afro-americanos “preguiçosos” e “irresponsáveis”, asiáticos “hipócritas” e franceses “pretensiosos” e “cruéis”. No fim do episódio, todos se lançam nos braços do coachem agradecimento caloroso.

A estrutura do programa segue, dessa forma, a dramaturgia da redenção, do exorcismo musculoso (que sempre tem final feliz), e constitui um grande clássico da narração nos Estados Unidos.3 Ela mobiliza um modelo de doutrinação ao mesmo tempo religioso e militar que está a serviço da ideologia do renascimento (born again). Essa “terapia do choque” se baseia em técnicas violentas, em particular a humilhação e a pressão sobre os protagonistas até desmontá-los e fazê-los admitir seus próprios defeitos e erros.

O conjunto é atravessado por uma lógica de virilidade presente em todas as versões de Kitchen Nightmares. Para Ramsay, é a violência verbal – onipresença de palavras como fuck [foda-se] e shit [merda], além de insultos e ameaças – e a exposição do torso nu: ele muda de roupa em frente à câmera duas vezes em cada episódio na versão britânica. Em relação ao aspecto viril, a produção francesa aposta na estatura colossal de Etchebest, que não hesita em intimidar fisicamente e empurrar os protagonistas. Para sair da crise, a maior parte deles se submete a provas físicas para elevar a moral: boxe, rugby, paintball...

Contrariamente ao que se esperaria, a expertise profissional do chef “capacitador” se expressa pouco no plano técnico da gastronomia; e é cada vez mais o caso das versões inglesa e norte-americana. O trabalho de preparação das refeições aparece em forma de imagem em montagens breves e espetaculares, estilo filme de ação, com passagens infalíveis de corte de legumes em alta velocidade e das enormes labaredas de processos de flambagem. Jamais se vê o “trabalho sujo”, as tarefas ingratas do trabalho comum que em geral são delegadas aos subalternos, e cuja gestão constitui um elemento determinante na organização de todo o coletivo de trabalho;4 ou então aparecem de maneira fugaz, porque se transformam em possibilidade de redenção, como em um plano geral do restaurante no qual se vê a equipe limpando uma cozinha excessivamente imunda.

As referências explícitas à competência profissional estão relacionadas, em geral, a problemas de higiene: pote de 5 litros de maionese industrial mantido em temperatura ambiente, baratas atrás da geladeira, alimentos podres dentro do congelador, forno e exaustor engordurados. O programa então colhe depoimentos de anônimos a partir do simples bom senso, sem jamais vincular o trabalho à realidade social. É evidente que os produtos frescos são preferíveis aos congelados, mas jamais se fala em custos ou no tempo necessário para sua preparação, que algumas vezes são tratados de maneira eufemística: “Está vendo, não é tão caro nem tão complicado”. Em outras palavras, torna-se uma questão de vontade.

Ter “espírito de equipe”

De um episódio a outro, os protagonistas possuem níveis técnicos bem diferentes, e os estabelecimentos visitados são bastante diversos – da pizzaria do bairro ao mestre do sushi ou a um restaurante de alta gastronomia. Mas as soluções do coach são sempre as mesmas: tudo é uma questão de atitude, vontade, compromisso e exigência. Em suma, sempre são questões individuais.

Assim, o restaurateur aparece como uma figura paradigmática do trabalho contemporâneo e da neoadministração com traços paradoxais: ele é ao mesmo tempo independente e incentivador do “espírito de equipe” (leia-se: saber comandar ou, quando se trata dos empregados, saber obedecer), totalmente comprometido com seu trabalho, assume responsabilidades, tem sangue frio em situações de urgência, mas também é capaz de suportar jornadas de trabalho estafantes e aceitar um salário miserável com a promessa de um amanhã radiante. Tudo isso em uma mistura de competências técnica (na cozinha), relacional (no salão) e criativa (pratos servidos no salão). Esse modelo de transformar empreendedores independentes e talentosos em espetáculo promove a figura “riscófila” dos que se tornam empreendedores da própria existência e a depreciação do mundo assalariado.

Colocada de lado nos primeiros episódios da produção britânica, a questão do dinheiro jamais aparece de forma concreta e precisa em Kitchen nightmares− seja o problema das dívidas, dos salários, dos produtos ou dos preços do cardápio. Não se sabe nada – origem, formação, residência – sobre os aspectos sociais dos protagonistas ou de suas redes. Nesse universo encantado, falar abertamente de cálculo ou de estratégia obrigaria a elevar o regime de crença compartilhada no jogo social e a revelar as verdadeiras “cozinhas” dos restaurantes – que, se aparecessem tal como são, não poderiam mais ser sistematicamente circunscritos pela narração à esfera celeste da vocação e da moral individuais.5 Tudo se reduz a questões psicológicas e à personalidade do “capacitado” pelo coach.

Esses programas mostram, assim, um encantamento do mundo social que se apresenta a nós. Kitchen nightmares reduz o trabalho a uma sequência de provações que seriam também epifanias: de pedido em pedido, o labor é ou deve ser eternamente questionado e precisa dar lugar à perpétua reafirmação do compromisso do dono do restaurante, de sua probidade e de seu desejo incansável de fazer as coisas direito. E a precariedade termina por ser aceita como um glorioso evangelismo.

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