Personagem com Asperger é um dado natural em ‘The bridge’



Publicado originalmente no site: http://kogut.oglobo.globo.com/noticias-da-tv/critica

Quarta-feira, 18 de setembro de 2013, 09h01

Patricia Kogut




Uma das principais estrelas de “The bridge” (aqui no ar no FX), a detetive Sonya (Diane Kruger), desde a primeira cena, causa uma certa estranheza. Ela se diz incapaz de mentir, mesmo se forem aquelas pequenas inverdades educadas, como um elogio à comida de um anfitrião. Tampouco nota quando sua rude franqueza ofendeu alguém. Essa falta absoluta de máscara social impressiona. Como a trama se apoia na tensão entre opostos (os ricos EUA e o México miserável, uma polícia profissionalíssima, outra, cheia de problemas etc), à primeira vista, a personagem parece ter sido criada para realçar, por contraste, os traços de seu parceiro. Ele é o investigador Marco Ruiz (Demián Bichir), sujeito passional, um poço latino de boas intenções, ainda que, aqui e ali, desprovido da necessária frieza.

À medida em que a série avança, Sonya segue causando uma certa irritação. Impossibilitado de se acostumar com certas atitudes estranhas da personagem, o público fica sentindo aquele grão de ervilha incomodando mesmo debaixo de 20 colchões, como no conto de Hans Christian Andersen.

Até que, no oitavo episódio, numa discussão corriqueira na delegacia, ela defende uma linha de investigação pouco provável. A coisa soa tão absurda que leva um colega a explodir: “Até quando vamos ficar aqui ouvindo o que diz essa savant?”, pergunta ele ao chefe num acesso de descontrole. A reação geral é de constrangimento. Nessa hora, fica claro para o público pela primeira vez que Sonya não é apenas uma pessoa muito excêntrica — como volta e meia parecia.

Aqui um parêntese para explicar que savant (significa literalmente sábio em francês) é uma síndrome em que a deficiência mental está associada a uma memória prodigiosa. Sonya, portanto, não é savant. Ela tem Asperger, uma síndrome classificada dentro do espectro do autismo. Não se sente capaz de inventar mentiras sociais e tem uma tendência a interpretar a informação de maneira bem literal. Mas é a mostra viva de que “esperteza” e “inteligência” são conceitos bem diversos. É perfeitamente funcional. Todos os principais avanços da investigação criminal da trama se devem a ela.

“The bridge” merece a sua atenção por vários motivos. É uma história empolgante, construída em torno de clichês, mas que escapa de todos eles, além de contar com ótimo elenco, bela fotografia e locação charmosa, a região de fronteira entre El Paso e Juarez. Mas é essa personagem que faz o programa ser muito especial. Só por causa da sua existência, o título “The bridge” ganha uma dimensão mais poderosa do que por todas as outras pontas da história. Sua voltagem é fora do comum, mas isso passa com grande naturalidade. Não se vê um sinal de didatismo ou debate sobre preconceito, nem uma tentativa de ser politicamente correto. Não há marcação de posição. A nossa televisão ainda está muito longe disso.

Comentários

  1. Nossa fiquei realmente impressionada!Acho fantastico esse tipo de abordagem naturalista de Síndromes e/ou Deficiencias,que normalmente são colocadas exatamente da forma contraria.Me irrita profundamente como as novelas da Globo,por exemplo,que tratam desse tipo de assunto de maneira exagerada e que tende a excluir mais ainda o individuo na novela,alem de ele ser tratado como um ser de outro mundo.Outro dia vi um filme que falava da Síndrome de Asperger,inclusive era uma comedia romantica(pelo incrível que pareça)e tinha também esse tom mais natural,no entanto,ao contrario da serie,isso era explicito desde o começo do filme.Foi muito interessante,pq eu não conhecia de fato,as características da síndrome.Fiquei curiosa a respeito da serie e pretendo ve-la um dia desses.Espero que ela traga um pouco mais de conhecimento e conciencia para as pessoas que,assim como eu,não tem esse tipo de informação.

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