Sessão nostalgia nas telas, o Brasil de 1980



Do topless às ‘Páginas Amarelas’ e samambaias, reprise de ‘Água viva’ faz sucesso ao exibir hábitos e modismos que marcaram o começo da década



Publicado originalmente no site: http://oglobo.globo.com/cultura/sessao-nostalgia-nas-telas-brasil-de-1980-10265620

Domingo, 06 de outubro de 2013, 11h23


Roberta Salomone



As musas arriscavam um topless em praia cheia, exibindo suas formas naturais, sem silicone ou lipoaspiração. Os galãs seduziam com camisas abertas até praticamente o umbigo, mostrando o peito não depilado. Na vida pré-celular e pré-Google, localizar alguém (com ajuda das “Páginas Amarelas”) podia demorar dias, mas na casa das famílias mais afortunadas quase sempre havia um mordomo para atender às ligações e anotar os recados. Em reprise no Canal Viva desde segunda-feira, “Água viva” retratou com fidelidade os hábitos e valores estéticos da década que começava ali. A história de Gilberto Braga, com a colaboração de Manoel Carlos, foi sucesso em 1980 e mostra um Brasil bem diferente do de hoje em dia.


— Não sou uma pessoa nostálgica, mas estou adorando rever a novela. O figurino é superatual, e naquela época não havia metrossexual, não. As mulheres mudaram muito, mas eu continuo sem alisar meu cabelo ou usar megahair — conta Betty Faria, a personagem Lígia, separada, mãe de dois filhos, disputada pelos irmãos Fragonard e que representava a verdadeira mulher moderna.

De fato, não faziam parte do vocabulário feminino escova progressiva, japonesa ou com formol. Os cabelos (quanta diferença…) eram, em geral, volumosos ou encaracolados e não era lugar-comum pintá-los de louro. Já entre os rapazes, Kadu Moliterno, o Malvino Salvador dos anos 1980, era o típico carioca: bronzeado, simpático, mas que não deixava de sorrir só porque tinha um espaço gigante entre um dente e outro.

A cidade do Rio de Janeiro era o pano de fundo da novela. E o Leblon, que tem o metro quadrado mais caro do Brasil, já era sonho de consumo. A secretária Irene (Eloísa Mafalda) fala, empolgada, do apartamento que comprara com o irmão no bairro. Menciona uma parcela de 170 mil cruzeiros (R$ 46 mil, na correção pelo IGP-DI), paga com ajuda do irmão que “acertou no milhar” (expressão do jogo do bicho). Nas casas dos personagens principais, a decoração chega a tirar o foco das tramas: papel de parede, tapetes, espelhos e sofá de couro eram as grandes tendências. Plantas de todos os tipos enfeitam os ambientes. As samambaias, que deixaram de ser cafonas e voltaram à moda recentemente, eram verdadeira febre. Já o bar na sala era objeto de desejo para quem mal chegava em casa e entornava goela abaixo uma dose de uísque para relaxar.

Ao contrário das produções dos anos 1990, a novela tem textos longos e um ritmo bem mais lento (leia a análise de Artur Xexéo, ao lado). Uma cena com dois atores pode se arrastar por um bloco inteiro.

— “Água viva” tem vários núcleos. Como não havia muita competição, podíamos fazer cenas mais longas, o que, a meu ver, tornava as novelas mais densas — diz o autor, Gilberto Braga.

Entre os destaques da história estão as excentricidades de Stella Simpson (Tônia Carrero) e o drama da órfã Maria Helena. Apontado como o pai da menina, Nelson Fragonard, personagem de Reginaldo Faria, assume que teve um caso com a mãe da garota, e a paternidade acabará sendo aceita numa época sem exame de DNA.

“Vamos transar esse cabelo?”

Transar, que tinha um significado além do que é empregado hoje, era o verbo da vez. “Você não entende nada de transa burocrática”, dizia um personagem. “Vamos transar esse cabelo?”, perguntava outra. E inúmeras expressões podem ser destacadas. Fazer uma aplicação no banco era “empregar” o dinheiro, e “gamado” era o estado de quem se apaixonava. Não se ficava distraído ou desconfiado, mas sim “desligado” e “grilado”. E “uma uva” podia ser elogio a uma mulher bonita. Em cena com a mãe, o estudante de Medicina Marcos (Fábio Jr.) reclama que ela, sempre entre as dez mais elegantes do Ibrahim (Sued, colunista social), vive “pendurada” nos bancos, e que “isso é uma doença social”.

Enquanto quase todo o elenco fumava em cena, o que era hábito associado a uma vida prazerosa, de sucesso e de sedução, o windsurfe era o destaque da abertura, que tinha “Menino do Rio”, música de Caetano Veloso entoada pela voz doce de Baby Consuelo. O esporte não pegou, nem a pesca esportiva, atividade de Nelson Fragonard.

Quem tem menos de 30 anos não faz ideia do que sejam, mas as fotonovelas continuaram populares ainda por alguns anos. As revistas em quadrinhos, com fotos no lugar de desenhos, foram motivo de briga entre uma funcionária do orfanato e Maria Helena. A menina “roubava” a revista para folheá-la escondida e leva uma surra da moça, o que hoje causaria grande polêmica. E o diálogo entre Janete (Lucélia Santos) e a sogra? Ao falar de uma bolsa de estudos para uma pós-graduação na Alemanha, ela ouve: “Física nuclear não é um bom cartão de visitas, não é uma profissão feminina. Isso é coisa pra homem”, sentencia Lourdes, vivida por Beatriz Segall.

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