Os donos de um peixe grande


Ricardo Rozzino, Celia Catunda e Kiko Mistrorigo, donos da TV PinGuim, cujo "Peixonauta" está em cerca de 300 produtos


Publicado originalmente no site: www.valor.com.br

Segunda-feira, 11 de novembro de 2013, 06h14

Paulo Vieira



O edifício Medicina, na avenida Brigadeiro Luís Antônio, em São Paulo, não tem esse nome peculiar à toa. Em seus dez andares há cerca de 30 consultórios médicos, entre eles o do ortopedista Guglielmo Mistrorigo, que comprou seu quinhão no térreo do prédio ainda na planta, em 1960. Mas é outro Mistrorigo, seu filho Kiko, que, junto com seus dois sócios, Celia Catunda e Ricardo Rozzino, mantêm a empresa mais, digamos, século XXI do Medicina.

Ocupando 400 m2 espalhados por três andares, o trio é dono da TV PinGuim, produtora de conteúdo audiovisual de animação cujo personagem mais vistoso é um peixe detetive que consegue viver e voar fora d'água com um capacete que parece um aquário. Peixonauta é o nome desse herói inverossímil, que, no desenho, ao desvendar diversos enigmas, ajuda sua amiga Marina e o macaco trapalhão Zico a cuidar da natureza. Já na vida real, ele é o responsável, entre outros feitos, por botar combustível nos planos de expansão da TV PinGuim, que quer, só para citar um único parâmetro, passar dos atuais 48 funcionários celetistas para 80 em até cinco anos.

Mais importante, o sucesso internacional da série "Peixonauta" marcou um novo momento da animação brasileira. Concebido para ser uma série de 52 episódios de 11 minutos cada um, a produção "fez América", como se dizia no tempo da pedra polida, e foi vendida para 82 países, de México, Chile e Argentina à Turquia, de Sérvia e Albânia ao sultanato de Brunei. Na América propriamente dita, os Estados Unidos, ele entrou através de dois nichos: pelo canal em espanhol do Discovery e pelo catálogo da Netflix. Falta ainda chegar à Europa Ocidental, cujos países protegem com cotas generosas os produtores locais.

Mas o roteiro da internacionalização, como é de se imaginar, foi bastante acidentado, algo que nem o Chumbo Feliz, um peixe obeso e sonolento que dá respostas enigmáticas às perguntas aflitas do Peixonauta, poderia prever. De início, o que era para ser uma coprodução com uma grande empresa de animação canadense, a Nelvana, e que viria a ser efetivamente o trampolim da internacionalização da série, se perdeu nas dificuldades logísticas, no inchaço do orçamento e na dificuldade dos canadenses em conseguir um canal de exibição.

"Com eles, o custo dos 52 episódios iria ficar em US$ 6 milhões. Ao fazermos sozinhos, o 'Peixonauta' custou 5 milhões... de reais", diz Kiko Mistrorigo. "Numa coprodução, há muitas funções em duplicidade, além dos custos que não existem aqui, como as viagens constantes", completa. E esse não é o único problema. "É um inferno fazer roteiros com coprodutor, tínhamos uma coisa na cabeça, eles, outra. Acabava demorando o triplo do tempo", diz Celia.

E o tempo rugia. A série, antes mesmo de existir, já tinha garantia de exibição no Brasil, graças ao interesse do canal Discovery Kids, que também entrou, via incentivo fiscal, como um financiador minoritário do projeto. Isso em 2005. Mas "Peixonauta" só foi ao ar em 2009. Sem capital próprio suficiente para a empreitada, a TV PinGuim teve que viver o inferno da burocracia da captação de recursos em suas mais variadas formas e modelos. Uma miríade de receitas, via tentativa e erro, foi mobilizada para levar a série adiante, envolvendo editais, BNDES ("Pago o mesmo juro dos portos e das petroleiras", diz o sócio Rozzino, o economista do trio), aportes de uma patrocinadora, a agroindustrial Bunge, o canal Discovery e recursos próprios.

"De uma produtora de conteúdo passamos a ser uma gestora das nossas próprias marcas, como o Peixonauta", diz Ricardo Rozzino
Quatro anos para a entrega de um produto é tempo demais sob qualquer ponto de vista, especialmente quando se trata da principal atividade de uma empresa. Mas animação é um trabalho intensamente manual - quatro episódios do "Peixonauta" eram feitos por mês, com 40 animadores - e as possibilidades de terceirização na Índia e na Malásia foram descartadas justamente por causa desse aspecto de marchetaria do negócio. A espera valeu: a estreia não poderia ter sido mais auspiciosa. "Peixonauta" precisou de apenas uma semana de exibição para se tornar o programa mais assistido do Discovery Kids (que agora também exibe o segundo ano da série) e não tardou a chegar à TV aberta. Foi exibido por um ano e meio no SBT, a partir de maio de 2011, e também desembarcou na TV Cultura, no ano passado, para um contrato de cinco anos.

Os contratempos com os canadenses na gênese dessa história também acabaram sendo benéficos. A internacionalização se deu sem eles, a partir dos negócios fechados nas muitas feiras internacionais, como a Mipcom, de Cannes, que Kiko e Celia visitam com frequência. E sem a parceria, a TV PinGuim pode ficar com todos os direitos patrimoniais do desenho, o que possibilitou à empresa partir para a estratégia que pode ser responsável pela geração de 90% das suas receitas num futuro próximo. "De uma produtora de conteúdo passamos a ser uma gestora das nossas próprias marcas, como o Peixonauta. Nossa meta para daqui a cinco anos é que o licenciamento represente 90% de nosso faturamento", diz Rozzino.

O passo para essa terra prometida da gestão das próprias marcas já começa a se desenhar, pois recursos daí advindos hoje respondem por 35% do faturamento da TV PinGuim. O universo "Peixonauta" está em cerca de 300 produtos, de roupas de crianças e calçados de bebês da Riachuelo às barracas infantis da Multibrink, passando pelos livros da Melhoramentos. São 15 licenças, todas brasileiras, um número modesto se comparado ao império internacional da Turma da Mônica, é verdade. Os contratos foram fechados via Redibra, mas o novo momento impõe decisões mais autônomas. A TV PinGuim entrou para a Abral (Associação Brasileira de Licenciamento), entidade que reúne detentores de marcas como a Turner Internacional, a Disney e a Hasbro, entre outras; Rozzino também visitou neste ano a LicensingExpo, em Las Vegas, a grande feira de licenciamento do mundo, uma primeira abordagem para tentar fazer do Peixonauta uma marca mundial. "Tive boas conversas para editar livros na Turquia e, quem sabe, na França."

Novos tempos, novos problemas. "Virar uma administradora de marcas nos abriu um universo infinito de relações, questões e problemas. Hoje lidamos com 15 fabricantes diferentes, temos de fazer guias de estilo, chamar licenciados para convenção, mostrar os novos produtos. A audiência do 'Peixonauta' gerou várias demandas", diz Rozzino. Sua missão agora na TV PinGuim é estruturar um departamento de licenciamento, outro de marketing e um canal para as vendas internacionais.

Ainda que o "Peixonauta" tenha demonstrado longevidade, a TV PinGuim quer e precisa ver a família crescer. Estão há tempos em produção dois longas-metragens - o do próprio "Peixonauta", em 3D, e "Tarsilinha", cuja heroína de 8 anos viaja pelas paisagens fantásticas dos quadros modernistas de Tarsila do Amaral (1886-1973).

Peixonauta" conta histórias do peixe detetive que ajuda a amiga Marina e o macaco Zico a cuidar da natureza

"A negociação com a representante da Tarsila do Amaral foi bem tranquila porque foram eles que nos procuraram para fazermos um personagem infantil", diz Kiko. "O longa foi a nossa proposta e, por contrato, estamos autorizados a produzir os conteúdos para divulgar o trabalho da Tarsila entre as crianças. Fizemos uma vasta pesquisa e encontramos um monte de desenhos e ilustrações desconhecidas superinteressantes e que se tornaram alguns dos personagens do filme. Os cenários são baseados em algumas pinturas, sem uma preocupação de ser uma reprodução fiel."

Mas os cronogramas das produções têm sido sucessivamente alterados e as previsões de lançamento, adiadas. Por trás disso, o suspeito usual de sempre: a dificuldade com a captação. A demora, no caso de "Tarsilinha", ao menos teve o condão de fazer a produção dar alguns saltos tecnológicos - quando chegar às telas, será em 3D. Quanto a "Peixonauta", o filme, o dinheiro finalmente saiu em maio, após três anos da aprovação do projeto. Se tudo correr bem, o longa chega às telas em 2015.

"Luna Chamando" é outra série pré-escolar em que a TV PinGuim aposta. Luna, uma garota de 5 anos, faz perguntas que nossas filhas de 5 anos também fazem ("Peixe bebe água?", por exemplo), mas, no caso dela, sem esperar pela resposta dos pais: Luna sai às carreiras para desvendar o mistério. Sua paixão pela ciência e por como as coisas funcionam na Terra (e em Saturno) já tem audiência garantida em 2014, graças a acordos de exibição com o Discovery Kids e com a TV Brasil.

Ainda há "Gemini 8", série para TV e web, cujos protagonistas são dois meninos, um da Terra (Marco) e outro não (Polo), que vivem aventuras siderais, pretexto para terem sempre reforçados seus laços de amizade. Para alavancar a série, a TV PinGuim conseguiu a garantia de exibição do Disney Channel e armou parceria com a editora Abril. "A Abril percebeu que só pagava pelos personagens dos outros, mas com 'Gemini 8' vai ter direito a uma parte da propriedade", diz Kiko. Já para os pais do Peixonauta, a parceria pode ser interessante para divulgar a série, uma vez que os personagens aparecem nas páginas da revista "Recreio" e já ensejaram a produção de quatro HQs. "Gemini 8", que tem trilha sonora assinada por Arnaldo Antunes, também ganhou, com a associação, um canal de divulgação gratuito. "Normalmente, lança-se o produto para então ser comentado. Agora, com as páginas das revistas da Abril, a gente vai criar expectativa antes do lançamento."

Outro projeto também ocupa as mesas dos criativos do edifício Medicina. "Sou Mais Surfe" junta grupos de meninos surfistas brasileiros que se desafiam em busca das melhores ondas. O mote é esse, mas o produto pode se tornar um telefilme de 50 minutos ou um longa-metragem para o cinema. Conceito, sinopse, "bíblia" [peça com descrição acurada dos personagens, inclusive visualmente] e roteiro já estão prontos, mas a TV PinGuim só vai colocar animação no momento em que houver uma alavancagem financeira. E se o capital não vier, o que parece cada vez menos provável com o fortalecimento da divisão de licenciamento, os três sócios garantem ter o desapego necessário para abortar o projeto.

A televisão é o grande ímã, mas Kiko, Celia e Rozzino olham também para as outras formas de exibição. Canais próprios do Peixonauta estrearam recentemente no portal UOL e no YouTube. E é a própria TV PinGuim que desenvolve os aplicativos para iPad (há 12 do Peixonauta na Apple Store, oito deles pagos) e para Android. Além disso, o trio investe na formatação de conteúdo para uso paradidático, especialmente no caso de "Luna Chamando". Rozzino também se entusiasma com a possibilidade de vender a patrocinadores eventos e conteúdos customizados, desde que não haja interferência nos roteiros originais.

Ao fim desta entrevista, como se seguissem um roteiro pré-escrito, Rozzino e Kiko responderam quase em uníssono quando a reportagem, olhando um prospecto da TV PinGuim com cinco das produções citadas nesta matéria, perguntou se ainda havia mais novidades pela frente: "Ideias aqui não faltam, só não temos como imprimir folhetos como esse com todas elas".

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