Uma vez nascendo: True Detective por Daniel Galera


Teorizar compulsivamente a respeito de uma série enquanto ela está sendo exibida é um pouco como conversar sobre um filme durante a projeção, mas é exatamente o que vou fazer com 'True detective'


Publicado originalmente no site: http://oglobo.globo.com/cultura/uma-vez-nascendo-11765893

Segunda-feira, 03 de março de 2014, 07h32

Daniel Galera




“Acredito que a consciência humana é um trágico passo em falso da evolução. Ficamos autoconscientes demais”, o detetive Rustin Cohle diz para o parceiro Martin Hart no primeiro episódio da série “True detective”, atualmente em cartaz na HBO. “Somos coisas operando sob a ilusão de possuir um self, aquele agregado de sentimentos e experiências sensoriais, programadas com a certeza total de que cada um de nós é alguém, quando na realidade somos todos ninguém.” Já parece pessimismo suficiente para um personagem que acabamos de conhecer, mas Cohle é também um antinatalista. “Acho que a coisa mais honrada que nossa espécie pode fazer é negar nossa programação. Cessar a reprodução. Andar de mãos dadas rumo à extinção.”

Quando ouvi o pequeno discurso de Cohle, fiz duas associações imediatas. A primeira foi a lembrança de um site contendo o programa do Movimento Pela Extinção Humana Voluntária (VHEMT). Um amigo me enviou essa página anos atrás e achei que era piada. A agenda do VHEMT soa mais ecológica do que filosófica (restaurar o planeta Terra ao esplendor de outrora et cetera) e tem inclinações otimistas: evitar a reprodução é uma forma de minimizar a quantidade de sofrimento humano.

A segunda associação foram os aforismos de Emil Cioran. O pessimismo antinatalista de Cohle parecia saído diretamente dos livros do filósofo romeno. Em “Do inconveniente de ter nascido”, Cioran lasca: “Sei que meu nascimento é fortuito, um acidente risível, mas diante da menor distração passo a me comportar como se ele fosse um acontecimento crucial, indispensável para o progresso e o equilíbrio do mundo.” O nascimento é descrito como uma catástrofe que nos causa culpa e nos empurra em direção à morte. “Não me perdoo por ter nascido. É como se, ao entrar nesse mundo, eu tivesse profanado um mistério (...) ou cometido uma falta de indizível gravidade.”

Teorizar compulsivamente a respeito de uma série enquanto ela está sendo exibida é um pouco como conversar sobre um filme durante a projeção, mas dessa vez, enfeitiçado pelo clima ominoso do terceiro episódio, procurei uma entrevista do autor de “True detective”, o escritor Nic Pizzolatto, na qual ele comentasse suas inspirações. Bingo: lá estava Cioran. Mas havia também um punhado de escritores de literatura de horror sobrenatural, entre eles o cultuado Thomas Ligotti, de quem nunca tinha ouvido falar.

Pizzolatto destaca uma obra de não ficção de Ligotti, “The conspiration against the human race” (A conspiração contra a raça humana), publicada em 2011. Comprei e li. A partir da análise de diversas obras, em especial um ensaio de 1933 do obscuro filósofo norueguês Peter Wessel Zapffe, Ligotti faz defesa do pessimismo fundamentado na ideia de que a consciência humana é uma abominação da natureza. Ela já teria sido fatal para nossa raça há muito tempo, caso não tivéssemos aprendido a subjugá-la com todo tipo de ilusão defensiva. Ele compara a condição humana com a dos marionetes que abundam na literatura de horror. Enganados pela ilusão do self e atrelados a um universo determinista, somos apenas marionetes humanos sofrendo sem necessidade. Ligotti desdenha do “pessimismo heroico” que identifica em autores como Schopenhauer e Camus. Para o verdadeiro pessimista, qualquer desejo de mitigar nosso sofrimento deve ser levado à sua conclusão lógica e mais humanitária: a abolição total do ser humano. Ninguém colocou a ideia em melhores termos que Brás Cubas: não transmitir a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.

Não sei se “True detective” pretende explorar esse tipo de pessimismo extremo para além de sua contribuição estética. Mas parece natural que a trama do seriado siga explorando as implicações das ideias de Cohle sobre a responsabilidade moral dos seres humanos. Em um mundo como o descrito por Ligotti, o serial killer é culpado por seus atos? O sétimo e penúltimo episódio deve ter ido ao ar ontem. Escrevo ainda curioso para ver onde isso vai dar.

O que mais me intriga, porém, não tem nada a ver com “True detective”. É constatar que esse tipo de niilismo radical pode ter um efeito estimulante sobre certas pessoas, ou pelo menos sobre mim (duvido que eu esteja sozinho nisso). Cioran, que conseguia dizer o que dizia soando quase jovial, descreve o tipo de liberdade desesperada que almeja como “a liberdade dos natimortos”. Proponho que pode ser encantador expor a consciência à própria vulgaridade. Por um instante, experimenta-se em vida a tal liberdade desesperada. Não há nada de niilismo nisso. Pelo contrário. Em lampejos assim, nos quais nos reduzimos a nada pelo brevíssimo período em que isso é tolerável, é possível sentir empatia por um grão de areia. O pessimismo frio e cruel de Cohle é pouco imaginativo.

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