'Não gosto de quase nada que eu faço’, assume Gilberto Braga


Na série da Revista da TV sobre autores, o trio de criadores fala das novas atribuições de quem escreve para televisão

Publicado originalmente no site: http://oglobo.globo.com/cultura/revista-da-tv

Domingo, 13 de abril de 2014, 08h00

Thaís Britto



Vou te dar um furo”, anuncia Gilberto Braga, já com cara de quem vai fazer uma piada.

— Na nossa novela haverá dois casamentos gays — diz, fazendo uma pausa dramática para depois completar: — Na vida real. O João vai se casar no sábado, e eu em 22 de março (a entrevista foi feita em fevereiro), depois de 41 anos de convivência. Não é incrível? O Ricardo foge, mas uma hora vai ter que se casar.

Gilberto, de 67 anos, Ricardo Linhares, de 51, e João Ximenes Braga, de 43, são os autores de “Três mulheres”, novela das 21h que virá depois de “Falso brilhante”, de Aguinaldo Silva, a sucessora de “Em família”. E embora a piada de Gilberto dê a entender que não, é provável que venha um casamento gay na trama sim: Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg interpretarão um casal que, após anos de vida em comum, vai oficializar a união. E Daisy Lúcidi é uma reacionária, inimiga da dupla. Mas elas não são as tais três mulheres do título: Gloria Pires, Camila Pitanga e Deborah Evelyn são as protagonistas do folhetim, cuja história eles não revelam.

— Se sai tudo antes, que graça vai ter no ano que vem? Não temos nem data de estreia. Só sabemos que é para depois do carnaval de 2015 — explica Ricardo.

Entusiastas do trabalho em equipe, Gilberto e Ricardo assinaram juntos “Paraíso tropical” (2007) e “Insensato coração” (2011), com João como colaborador, que em “Três mulheres” (título provisório) será titular. Já Ricardo começou sua parceria com Gilberto, que já conta cinco produções, colaborando em “O dono do mundo” (1991).

A nova novela marca a volta de Gilberto após se recuperar de complicações decorrentes de uma cirurgia no coração, em 2011. Os outros dois vêm de trabalhos recentes: Ricardo fez “Saramandaia” (2013), e João estreou como autor titular junto com Cláudia Lage em “Lado a lado” (2012). Nesta entrevista, no apartamento de Gilberto, no Arpoador, eles falam do processo de trabalho e de suas obras.



Vocês têm horários parecidos? Isso faz diferença?

Ricardo: Acordo às 8h, mas com a novela no ar, às 7h.

Gilberto: Em geral sou mais noturno, o Ricardo é mais diurno. Acordo tardíssimo. E você, João?

João: Eu não durmo, né? Já durmo pouco mesmo, mas com a novela no ar... A gente dorme com os personagens, sonha.

Ricardo: Na época de “O dono do mundo”, quando o Gilberto ia dormir, eu estava acordando. A gente se falava às 7h. Nossos turnos sempre foram assim...

Gilberto: Sou tenso, não durmo mal porque tomo remédio.

Vocês são todos muito tensos pelo jeito...

Ricardo: A gente fica ansioso pelo volume de trabalho. O ato de escrever é o mais fácil e prazeroso. Mas tem pequenas coisas com as quais a gente lida toda hora. É produção, edição, reunião, merchandising... A gente quase gerencia uma microempresa.

Gilberto: Quando comecei, era só escrever mesmo. Aos poucos, o autor virou um business man, tem que fazer as coisas mais variadas. Como sou organizado e gosto de equipe grande, vou distribuindo as tarefas. Em “Vale tudo” (1988), Leonor Bassères (1926-2004) era a responsável pelos cortes, por exemplo. Só ela cortava os capítulos. E era engraçada. Quando o editor ligava dizendo que tinha tantos minutos a mais, ela falava: “Diz aí quais são as cenas da Renata Sorrah” (risos). Ela era lenta. Só enxugando as cenas da Renata, resolvia.

João: Nunca imaginei, antes de trabalhar em novela, como era a mecânica dos cenários. Você tem que contar.

Como assim?

João: Há um limite por bloco, porque a novela é gravada pelo cenário. Você não pode usar um para uma só cena na semana. Não justifica a montagem.

Gilberto: Se precisa de um cenário para um assassinato, por exemplo, botamos mais umas cinco cenas ali para justificar.

João: Nunca pensei que faria tanta conta. Tenho pavor de matemática, só sei até a tabuada de 5. Hoje passo meus dias somando o tamanho das cenas, contando o número de páginas para fazer o gancho do intervalo...

Mas tem a parte boa, não é?

Ricardo: Ah, sim, essas coisas são pequenas. Bolar a trama, a história, as reviravoltas. Essa é a parte prazerosa.

João: É uma maluquice porque, apesar de toda a parte do gerenciamento, é um trabalho totalmente emocional. Isso de sonhar com os personagens é sério. Porque a gente tem um domínio psicológico de todos.

Gilberto, você inaugurou a prática da coautoria em novelas, não é?

Gilberto: Sim. Na época de “Corrida do ouro” (1974), eu não conseguia escrever os capítulos, ligava para o Daniel Filho dizendo: “Vou largar, não aguento mais, vou voltar a ser professor de francês”. E aí a Janete Clair se ofereceu para me ajudar. Na época ela fez o que atualmente se chama de supervisão, mas não se anunciava isso. As pessoas eram muito onipotentes e tinham vergonha de precisar de ajuda. Quando fiz “Dancin’ days” (1978), era muito sofrido e fui muito infeliz. Queria largar as novelas, mas o Boni me convenceu pedindo para eu fazer só mais uma. Acreditei nessa história e comecei “Água viva” (1980). No capítulo 30, minha vida já estava igual em “Dancin’ days”, um horror. Falei com o Boni que aquilo não era trabalho para uma pessoa só e queria alguém para dividir. Ele disse que achava muito natural, que nunca ofereceu porque ninguém tinha pedido. Então chamei o Manoel Carlos.

E como foi a reação das pessoas na época?

Gilberto: A Janete Clair me ligou apavorada! “Gilberto, você vai dividir a sua novela por quê?”. Eu expliquei que a novela não era minha, era da TV Globo, mas ela insistiu. “Se estiver cansado e sem ideia vem aqui em casa, a gente faz como em ‘Corrida do ouro’ e ninguém precisa saber”.

Ricardo: Isso é um caminho sem volta. Eu sou o autor que mais trabalhou em coautoria porque tenho prazer em dividir. E quando dá certo, como é o nosso caso, ou como quando trabalhei com Aguinaldo (Silva), é como um casamento. Se mantém. Essa vaidade é tolice. Isso é um trabalho. E ter alguém para dividir um trabalho, ou a vida, ou qualquer coisa, é muito melhor do que carregar um fardo sozinho. Porque é um processo difícil.

Gilberto: Mas para certos autores é fácil. Por exemplo, a Glória Perez escreve com a maior facilidade, sozinha. Ela é bem minha amiga, e uma vez me deu esporro porque eu disse que escrever novela é cansativo. Ela disse: “Ora, Gilberto, eu escrevo um capítulo em cinco, seis horas. Às vezes nem releio e mando. No dia seguinte eu olho como terminei e continuo. Uma cena atrás da outra”. Enfim, me deu uma bronca. Quando ela acabou, falei: “Mas, Glória, tem um problema: na hora que passa, a gente nota” (risos).

João: Não fala isso...

Gilberto: Por que não? Ela falou mesmo, não é segredo. E a Glória Perez faz um sucesso danado. A Dilma (Rousseff) falou que achava ela a melhor quando perguntaram quem era o escritor de novela preferido dela. É verdade, eu lembro que vi porque fiquei com ciúme.

João: Com ciúme da Dilma?

Gilberto: Ah, sempre gosto que falem que sou eu (risos).

Por que a parceria de vocês dá certo?

Ricardo: É afinidade. É igual casamento, amizade.

Gilberto: Cada um tem admiração pelos outros dois. E a gente só briga por causa de ar condicionado (risos).

Ricardo: Ah, o Gilberto gosta de morrer de calor.

Gilberto: Eles são muito calorentos, eu sou friorento. Eles já vão entrando e dizendo: “Liga o ar!”. E eu peço o casaco.

João: Outra coisa que facilita aqui é a “grife Gilberto Braga”. A gente já tem uns parâmetros. Claro que trazemos nossa visão, mas fui alfabetizado vendo “Escrava Isaura”. É engraçado que em “Lado a lado”, as pessoas diziam: “Ah, o Gilberto é o supervisor, parece uma novela dele”. Não é porque ele é supervisor, é porque a minha formação é das novelas dele.

E hoje como funciona a equipe de vocês? Vocês dividem o trabalho por núcleos, personagens, capítulos?

Gilberto: Aos poucos fui aumentando as equipes. Agora somos quantos? 10?

João: Por mim seríamos 20! Sou um entusiasta da equipe grande. Acho que quanto mais gente dando ideia, melhor.

Ricardo: Agora somos sete, no futuro seremos oito. Mas ainda estamos nos finalmentes da sinopse. O método de trabalho ainda não nasceu. Cada novela é diferente.

João: Mas você escolhe no colaborador o que ele pode trazer de melhor até pela experiência de vida. Por exemplo, em “Lado a lado”: nem eu nem a Cláudia temos filhos. Tinha uma colaboradora, a Maria Camargo, que tem 4. Em todas as cenas de criança, quando entrava em xeque a maternidade da Isabel, foi fundamental ter a experiência dela. É importante, quando você trabalha com parceiro ou colaborador, ver o que ele faz melhor que você.

Como precisa ser o ambiente para vocês escreverem?

Gilberto: Gosto do mais completo silêncio, para ouvir a novela.

Ricardo: Gosto de escrever com música clássica ou jazz. Não pode ser música cantada, que me distrai.

João: Preciso de silêncio também. O pior dia para mim é o que vai a faxineira. Ela sabe e nem me cumprimenta quando estou com novela no ar. Mas só a existência de outro ser humano no apartamento atrapalha.

Ricardo: Ah, não, eu trabalho com porta aberta, boto a roupa para lavar, faço compras no mercado pela internet, ligo para a minha mãe, atendo interfone, falo com o porteiro, vou ao banco...

Gilberto: Mas o Ricardo precisa fazer análise porque ele é muito onipotente. E trabalha demais.

Mas dá para levar uma vida normal quando a novela está no ar?

João: Não. Já decidi que vou montar uma pequena academia em casa. Em 2015 eu não saio de casa. Só para vir à reunião aqui.

Ricardo: Eu tento manter minha rotina e sair de casa o máximo possível. Gosto de conversar com as pessoas, isso para mim é muito importante.

Gilberto: Cada vez mais, quando estou escrevendo novela, mesmo com essa ajuda toda, me desligo do mundo. Meus amigos sabem que se morrerem, não vou ao enterro; se casarem, eu não vou. Só tenho folga domingo à noite. Janto fora e só. Nem ao cinema vou, não presto atenção ao filme.

João: Também não consigo. Enquanto a novela está no ar, não consigo me concentrar em nenhuma outra história. Mas na época de “Lado a lado”, consegui manter um ritual de toda sexta tomar um chope no Bracarense.

Ricardo: Isso são conquistas, né (risos)? Mas é verdade, a gente conversa muito sobre esse objetivo de ter mais qualidade de vida durante o processo de escrever a novela.

Está mais difícil escrever para o público de hoje?

Ricardo: A quantidade de informação que o público tem hoje é muito maior.

Gilberto: Eles entendem mais de novela do que eu!

Ricardo: São 40 anos assistindo a novela, três ou quatro por dia. Eles têm muita experiência e a cobrança é maior. Acho que o grande desafio é falar sobre temas contemporâneos, sobre o que o público está querendo ver. A sociedade está em transformação e a gente tem que acompanhar, dando ao público coisas que ele ainda nem sabe que quer, mas já quer.

João: A capacidade de atenção do público mudou, até porque a qualidade de vida do brasileiro melhorou. Aquela família que ficava trancada em casa vendo TV porque não tinha outra opção, hoje já pode comer uma pizza no shopping. Além disso tem a internet, a TV a cabo. Então as cenas têm que ser mais curtas, porque a atenção do espectador está mais variada. Quanto mais curta, mais difícil de escrever e mais cena tem...

Gilberto: Quando comecei, cada casa só tinha uma TV e o comportamento normalmente era: às 17h, 18h ligava-se a TV num canal e a vida ia correndo, a TV ligada ali. Às vezes prestava-se atenção, outras não. Então, nas novelas dessa época, eu fazia umas cenas bem gritadas, porque sentia que estava falando para as pessoas: “Presta atenção, eu tô aqui!”.

E as transformações, tecnológicas ou de comportamento, mudam o trabalho do autor?

Ricardo: O autor tem que acompanhar a velocidade da vida. Acredito que as novelas, para continuarem sendo o carro-chefe da emissora e o programa mais assistido do Brasil, vão ter que diminuir de tamanho. Virar uma macrossérie, ou algo assim, mas vai continuar sendo novela. Não vejo o brasileiro em geral como grande fã de seriado.

Gilberto, quais são seus trabalhos e personagens favoritos?

Gilberto: Do que mais gostei foi escrever a Maria de Fátima e a Odete Roitman em “Vale tudo”. Atualmente, gosto dessa organização de equipe. Não sou metido a besta, mas também não sou falso modesto. Escrever uma cena boa hoje não me dá tanto prazer porque já escrevi muitas. Então, quando leio uma cena muito boa de um colaborador meu, fico mais orgulhoso. É o que me dá mais prazer atualmente: passar conhecimento.

E o que teria feito diferente?

Gilberto: Não gosto de quase nada do que faço. Minha novela que acho melhor é “Insensato coração”, mas devo ser a única pessoa que acha isso. Porque eu valorizo muito o capítulo e não o todo. Se pegar qualquer capítulo de “Insensato”, tenho certeza que não vou ficar com vergonha. Porque a novela tinha um nível constante de qualidade. Já, por exemplo, “Dancin’ days”, a maioria dos capítulos era uma vergonha, era muito ruim, embora a espinha dorsal, com as duas irmãs, fosse fortíssima. “Vale tudo” é a mesma coisa. Era muito boa a parte da Maria de Fátima, da Odete, do César Ribeiro, da Solange. Mas a Raquel e seus amiguinhos, aquilo era uma chatice.

E João?
João: Minha carreira é muito curta. Mas fico muito feliz por “Lado a lado" como um todo, de a gente ter falado de um período tão importante do Brasil. E acho que era um bom novelão também. Tenho muito orgulho.

Ricardo: “Lado a lado” é melhor do que “Downton Abbey”. Mas no Brasil as pessoas não dão valor a isso, dão mais valor ao que vem com repercussão de fora. É mais bem escrita, mais bonita e mais bem realizada.

E você, Ricardo?

Ricardo: Não gosto muito de olhar para trás, mas recentemente tive muito prazer em fazer “Saramandaia” (2013). Consegui pegar personagens que o Dias Gomes bolou há 30 anos e colocar num contexto atual. Tenho um orgulho muito grande de ter feito como quis fazer a novela. E “Insensato” também é uma novela de que gosto muito. Só teria feito uma coisa diferente: tirado a Gloria Pires da cadeia mais cedo.

João: O que às vezes tenho pesadelos com “Insensato” é que acho que a Norma podia ter entrado mais tarde.

Gilberto: Eu não acho. Acho boa do jeito que foi. Em “Insensato”, eu e João brigamos um pouco porque ele queria que a Carol terminasse com o André e não deixei. Porque o Fagundes é meu ator desde “Dancin’ days”, excelente, um dos melhores da TV, ficou de corno a novela inteira e ia acabar sozinho? Não, tinha que ganhar a Camila Pitanga (risos).

João: A gente não brigou. Eu achei boa a forma como terminaram mas, sim, claramente eu torcia para o André.

Vocês costumam discordar muito nas tramas?

Ricardo: Falando assim parece maior do que é...

Gilberto: E a gente sempre segue aquela regra: manda quem pode, obedece quem tem juízo (risos).

João: Ah sim, isso é uma parceria com hierarquia, isso não está em dúvida! Mas nossa discussão sobre o mundo dos personagens é como a do espectador.

Ricardo: Consenso em novela não existe, nem aqui e nem no público. E de vez em quando a gente tem que desagradar ao público também, porque ele tem que se sentir surpreendido.

Há temas recorrentes no trabalho de vocês?

Ricardo: Com certeza. Nós três sempre temos a preocupação de falar de política, de corrupção, de ambição. Isso vai estar nessa próxima novela também. Família, disputas, inveja. São temas recorrentes.

Gilberto: Eu escrevo mais ou menos os mesmos personagens. O papel que o Gabriel Braga Nunes vai fazer nesta próxima, por exemplo, está em todas as minhas novelas. Cada vez é um ator diferente, com idade diferente, mas basicamente o personagem é o mesmo. É alguma coisa que está dentro de mim e tenho prazer em contar.

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