O que se passa com Downton Abbey?



Publicado originalmente no site: http://blogs.estadao.com.br/fora-de-serie

Sábado, 12 de abril de 2014, 13:11


Clarice Cardoso e João Fernando



Todo mundo que vê seriados gosta de formular suas teses de vez em quando, e o João e eu não somos exceção. Pelo contrário, a toda hora aparece algum debate novo sobre alguma estreia ou episódio.

A graça é que nós nem sempre concordamos. E um motivo de discordância recorrente nos últimos meses tem sido Downton Abbey. Ele acha que vai tudo bem, eu tenho (como sempre) meus poréns. Começamos a brincar que essa conversa já estava virando uma DR (discussão de relação), e por que não trazê-la para o blog?

É assim que nasce um novo tipo de post no Fora de Série: DR de Séries.

João Fernando
Trama ganhou gás com mudanças de comportamento e histórias apimentadas
O marasmo no palácio da família Crawley parece ter acabado na quarta temporada de Downton Abbey, que finalmente chegou ao Brasil no último dia 10, pelo GNT. Tudo bem que tudo acontece lentamente na série escrita por Julian Fellowes, mas, pelo menos, as coisas estão mais dinâmicas.
Mesmo com o luto de Lady Mary (Michelle Dockery) por causa da morte do marido, Matthew (Dan Stevens, que pediu para deixar o elenco), que dá o tom do primeiro episódio, a história fica um pouco mais animada quando O’Brien (Siobhan Finneran) dá no pé da casa da família aristocrática para dar expediente na equipe de Lady Flintshire (Phoebe Nicholls). Em pouco tempo lá surge Mrs. Patmore (Lesley Nicol) reclamando de mais um eletrodoméstico recém-comprado.
A chegada da ‘modernidade’ é uma das graças da quarta temporada, ambientada no ano de 1922. Além do visual, principalmente do elenco feminino, em que os penteados e as roupas entregam a passagem dos anos, novos hábitos e tecnologias dão um gás à trama. A mudança de comportamento, no que diz respeito aos negócios, representa uma guinada importante na relação de Lady Mary com o pai Lorde Grantham (Hugh Bonneville). A primogênita é quem vai tomar as rédeas da propriedade ao longo dos episódios. É interessante ver como a personagem se difere das temporadas anteriores, mais madura e menos menina mimada. Sem contar que ela será bastante cortejada. Porém, não falo mais que é para não estragar a surpresa de quem ainda não viu.
No andar inferior da casa, os destaques são para Anna Bates (Joanne Froggatt) e Alfred (Matt Milne). A loira será atacada por um forasteiro e ficará metade dos capítulos com esse tormento. Nos primeiros momentos, é até um pouco angustiante para quem assiste. Entretanto, o fato é um marco para quebrar a lentidão naquele rincão britânico. Por mais que o chororô se estenda na trama, não dá para negar que Julian Fellowes soube colocar uma pimenta boa.
O caso de Alfred não é tão impactante, porém, ajuda a transformar um pouco o ambiente da criadagem. Com aquela cara de sonso, o ruivo vai mostrar que não é tão bobinho e vai aproveitar seus talentos para alçar voos mais altos para além dos domínios de Downton, mexendo com o coração de Daisy (Sophie McShera).
Quem chegou para causar e deixou isso claro desde as primeiras aparições é Lady Rose (Lily James). A prima moderninha e rebelde dá um boa chacoalhada em seus parentes mais conservadores. A loira é responsável por deixar a série com ares mais futuristas em relação às temporadas anteriores. Por causa dela, em vez de cenários parados como os ambientes da família, as cenas se passam outros lugares, como uma espécie de gafieira, além da vinda de um cantor negro, que espanta os aristocratas.
Com mais espaço na trama, Lady Edith (Laura Carmichae) vai continuar sofrendo, coitada. Além de passar por apuros com o namorado Michael Gregson (Charles Edwards), a irmã ‘loser’ do meio, passará por uma situação extrema, o que dá um tom novelesco à série, mas sem deixar a bola cair. E é aí que está a graça de Downton Abbey. Em meio ao dramalhão dessa família tradicional, os personagens dela e os que estão ao redor conseguem surpreender pelo fato de terem atitudes extremas e outras bem à frente do seu tempo.
O charme da produção é exatamente mostrar as complicações daqueles seres do começo do século 20 com a elegância e a formalidade da Inglaterra naquele período. É curioso ver como eles demonstram seus sentimentos sem se encostar, mantendo o vocabulário refinado. Um abraço parece um ultraje, tamanho é comedimento dos personagens em se tocar. E claro, sempre permeados pelas excelentes tiradas de Violet Crawley (Maggie Smith), a alma da série. A senhorinha chique, aliás, está aparentemente menos falante, porém impactante como sempre. Melhor ainda é saber que eles já estão gravando a quinta temporada. Espero poder das as novidades da produção em breve aqui no blog.


Clarice Cardoso
Novos conflitos são provocantes, mas para onde foram o requinte e as sutilezas?
Há uma cena em Donwton Abbey em que a cozinheira, a sra. Patmore, estrebucha na cozinha diante de uma batedeira elétrica recém-comprada. A tecnologia é uma ameaça. Todos estão fascinados com aquela novidade, mas ela reage. Aquilo representa o começo do fim do mundo como ela o conhece. E ela reage mal. Todos reagirão.
A cena simboliza o mote da atual temporada da série criada pelo vencedor do Oscar Julian Fellowes, que é colocar, como nunca antes, seus aristocráticos (pedantes, e por isso ótimos) personagens em choque com as mudanças culturais e sociais na Inglaterra daqueles tempos. É claro que esse sempre foi um elemento que esteve ali (é uma semente que já estava plantada quando a filha caçula enfiou na cabeça que iria largar tudo e virar comunista, por exemplo), e nós sabemos que aquele estilo de vida, por mais fascinante que nos pareça, é insustentável.
Fellowes resolveu pegar pesado com a Família Crawley e seus criados. Muito a contragosto, os primeiros introduziram o ex-chofer e viúvo da filha caçula na casa, e achavam que isso já era muito generoso da parte deles. Mas aí chegou uma prima festeira e saidinha, que quer viver a vida do seu jeito, e não segundo as regras patriarcais que regiam tudo até então. Não bastasse isso, ela se interessa por um músico, que é negro, e vira um personagem recorrente. A economia também vai mal, e eles podem perder tudo. Cabe à mimada Mary, vejam só, tirar suas luvinhas de seda e trabalhar para manter os bens da família.
Eis que começa a grande polêmica: enquanto todos se divertem numa festa, a criada Anna é violentamente estuprada. Um choque (assim como a morte de protagonistas em anos anteriores): ela resolve esconder o crime. Se denunciar o ataque, será desonrada. A culpabilização da vítima era uma questão fortíssima nos tempos em que se passa a série e, infelizmente, pode ser vista ainda hoje.
Sua relação com o marido, o sr. Bates, se fragiliza. Ele nota que algo se passou, ela não assume o que é. O casal por quem tanto torcemos para que acabasse junto está em crise. Até que Bates descobre tudo e acolhe a mulher. Está tudo bem. Será? (Ele já mostrou que regrediu a seus modos criminosos para ajudar o patrão, e fica no ar a questão de que pode querer fazer justiça com as próprias mãos…)
Pois bem. Downtown Abbey é uma série deliciosamente lenta. Tudo se passa num ritmo próprio, chega a parecer que nada está acontecendo, mas tudo está em ebulição por baixo das aparências. Vez por outra, uma cena causa maior espanto e agita o espectador e os personagens, mas logo tudo retoma o ar de falsa calmaria.
Muito da evolução dos personagens se dá em seus mundos internos, sutilmente. Não há grandes discursos ou explosões de emoção. É mais importante manter a pose de sofisticação, boa educação e finesse. Mas o drama humano está lá.
Quando a história do estupro toma boa parte dos episódios, parece bagunçar justamente esse equilíbrio. O estilo mesmo parece se perder, pois, em vez de saborear cada cena, o espectador é levado a pensar, ansioso: Bates vai descobrir tudo? O criminoso vai voltar? Ana vai suportar isso em silêncio? O que aconteceu com o estuprador?
Downtown Abbey não é nada disso.
As reclamações vieram de todos os lados, principalmente porque muita gente achou a história de Anna sensacionalista. Não concordo, até porque, repito, é um debate importantíssimo e ainda atual.Minha crítica é outra: o enfoque excessivo dado a ele deixou pálida as várias outras tramas tecidas de forma tão zelosa por Fellowes.
Em entrevista recente à BBC, o próprio criador disse: “Deus sabe o quanto Downton é cozida em banho-maria. Temos narrativas leves e sutis, em tons lilás, que se entrecruzam e, de vem em quando, POOF, algo gigantesco acontece”.
O problema é que colocaram tanta dinamite para a explosão da questão entre Anna e Bates que, POOF, explodiram junto as sutilezas.

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