Transgêneros conquistam espaço na TV, no cinema, na música e nas artes visuais


Artistas como Laverne Cox, Carol Marra e Laerte Coutinho superam preconceitos e se destacam no meio

Publicado originalmente no site: http://oglobo.globo.com/cultura

Domingo, 08 de junho de 2014, 13h02


Liv Brandão



No dia 29 de maio, Laverne Cox completou “mais de 21 anos” — ela não revela a idade — de uma vida que descreve como sendo de incertezas e batalhas. Primeiro para entender quem era, já que a atriz, nascida no conservador estado americano do Alabama, veio ao mundo em um corpo masculino. Depois, para decidir assumir a identidade feminina, tendo sido vítima de preconceito, agressões físicas e humilhações. No ar desde sexta-feira na segunda temporada de “Orange is the new black”, da Netflix, Laverne mereceu, na semana de seu aniversário, a capa da revista “Time”, a primeira da influente publicação dedicada a um transgênero.

Como se emulasse os altos e baixos da vida de Laverne, a “Time” que a colocou na capa foi a mesma que, um mês antes, deixou de incluí-la em sua lista anual das cem pessoas mais influentes do mundo — a despeito de a atriz aparecer em quinto lugar nas pesquisas com leitores. Agradecendo aos fãs, que protestaram após a divulgação da seleção final, Laverne comemora agora não só o prestígio de ter tal destaque, mas a chance de falar sobre sua história, aproveitando para advogar por tantas outras mulheres que nasceram homens e homens que nasceram mulheres.

— Transexuais e travestis vivem situação muito mais delicada que os gays e as lésbicas. A sexualidade de um transgênero é aparente, suas distinções são visíveis, as pessoas rejeitam mais — afirma Carlos Alexandre Neves Lima, coordenador do Projeto Damas, braço da Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual, da Prefeitura do Rio, dedicado à inserção social e profissional de transgêneros. — A sua maior luta é para sair da invisibilidade, existir como cidadão. É provar que há outras saídas que não a prostituição. As três primeiras letras da sigla LGBT já tiveram seu momento: lésbicas, gays e bissexuais já têm sua voz, chegou a vez do T.

MAIOR PRODUÇÃO AUDIOVISUAL

É por meio da arte que nomes como Laverne, Carol Marra (atriz e modelo), Laerte Coutinho (cartunista), Joana Couto (artista plástica) e Mykki Blanco (rapper) procuram dar voz aos que trocaram de gênero. Eles ganham, por exemplo, produção audiovisual cada vez maior. A 4ª edição do Rio Festival Gay de Cinema, a ser realizada de 3 a 13 de julho, terá um documentário, um longa e sete curtas, além de um seminário, dedicados especificamente aos transgêneros — o dobro em relação à edição anterior da mostra.

— O cinema LGBT acaba refletindo os assuntos que estão sendo mais discutidos, e a produção de filmes sobre trans vem aumentando ano a ano. Em 2013, exibimos muitos filmes sobre casamento gay e adoção, desta vez são os transgêneros. Isso tudo contribui para tratá-los de forma mais honesta, fugindo dos estereótipos, já que esse é um universo muito grande, que precisa ser visto para ser compreendido — diz Alexander Mello, curador do festival desde sua criação, em 2011.

Para fazer esse retrato, Mello convocou a artista visual transgênero Joana Couto e seu namorado para posarem para o cartaz do festival. A imagem mostra um casal aparentemente hétero e feliz, mas só quem os conhece saberia dizer que a moça extremamente feminina na foto um dia foi João Gabriel.



As pessoas vão ter que olhar com bastante atenção para entender o que tem de diferente naquela foto. E isso faz pensar. O universo gay não é só de dois homens ou duas mulheres juntas, é muito mais amplo — opina Jô, que diz se considerar uma pessoa de sorte por não sofrer preconceito no meio artístico. — Sinto muito mais interesse pela minha trajetória do que rejeição. Quando explico que não nasci mulher, vejo carinho e preocupação. É claro que o fato de eu ser transexual vai chamar mais a atenção, porque é o que aparece primeiro. Mas o meu trabalho está engatinhando, e tenho apenas 23 anos. Quero chegar num ponto em que meu trabalho seja maior do que essas questões, mas acho importante usá-lo para falar sobre algo que as pessoas fingem não existir.

Diretora de uma série de filmes gays e do documentário “Gendernauts” (1999), sobre transgêneros de São Francisco — cidade considerada a meca dos LGBT e que abriga um pequeno museu dedicado à história e à arte produzida por eles, o Motha —, a alemã Monika Treut segue acompanhando a evolução das discussões sobre o tema.

— Decidi fazer o documentário numa época em que os transgêneros eram tratados como personagens de freak shows. Quando os programas de entrevistas levavam transexuais e travestis ao palco, eles eram tratados como aberrações, a ideia era só alavancar a audiência — conta Monika, de passagem pelo Brasil.

Quinze anos depois do lançamento de “Gendernauts”, a cena deixou de ser recorrente, mas certos estigmas permanecem. Nos EUA, ao receber Laverne e a modelo transexual Carmen Carrera em seu programa na ABC, a conhecida apresentadora de TV Katie Couric causou desconforto ao insistir nas perguntas sobre a operação para mudança de sexo. “A preocupação com a transição e a cirurgia objetifica as pessoas trans. E, por isso, não conseguimos lidar com as experiências reais. A realidade é que nós somos muitas vezes alvo de violência. Experimentamos discriminação desproporcional ao resto da comunidade gay. Nossa taxa de desemprego é o dobro da média nacional; se você é trans e negro, essa taxa se multiplica por quatro. A taxa de homicídios é maior entre as trans. Se nós focarmos na transição, não vamos nunca debater essas coisas”, respondeu Laverne, arrancando aplausos da plateia.

“DEVER CÍVICO”

A modelo e atriz brasileira Carol Marra, que interpreta a transexual Patricia em “Psi”, cuja primeira temporada se encerra neste domingo, às 21h, na HBO — depois de exibir o primeiro selinho transexual da TV no país —, diz ter sido acolhida de braços abertos nos bastidores. Ao contrário do mundo da moda, onde conta ter sido discriminada.

— Quando eu trabalhava com produção de moda, ser gay era fashion, divertido. Quando coloquei silicone e comecei a desfilar, as pessoas do meio, mesmo os gays, começaram a me maltratar — lamenta Carol, que concorreu ao papel em “Psi” com atrizes não trans e mais conhecidas do que ela. — Eu me sinto como uma mulher desde que nasci. Por isso, acho que tenho praticamente um dever cívico de levar a informação adiante, porque o preconceito nasce da ignorância. Acho que mais importante do que mostrar minha arte é mostrar que um transexual é uma pessoa como outra qualquer.

Carol, que já tinha vivido uma personagem transexual na série “Segredos médicos”, encerrada em maio no Multishow, se prepara agora para fazer seu primeiro longa, sobre o qual diz não poder dar mais detalhes, no papel de uma mulher:

— É uma vitória.

Se o aparentemente liberal mundo da moda hostilizou uma transgênero, foi no ambiente predominantemente hétero do hip-hop que emergiu a americana Mykki Blanco. O seu clipe “Wavvy” ultrapassou 1,1 milhão de visualizações no YouTube, fazendo dela um dos maiores expoentes do queer rap, vertente gay do gênero.

“Eu sou um travesti. Desculpa se ainda estamos em um momento da sociedade em que dizer essa palavra faz as pessoas sentirem como se isso fosse um retrocesso, mas sempre fui muito franca, e eu sou um travesti”, admitiu a rapper, que fala de si no feminino, em entrevista ao site “Dummy”, no fim de 2013, sem se importar com o julgamento de seus pares.

Para a cartunista Laerte Coutinho, que diferentemente de todos esses exemplos só fez a transição depois de conquistar notoriedade e de formar uma sólida base de admiradores, a arte é tão importante para a discussão quanto a sua “transgeneridade” é, hoje em dia, para a sua obra:

— Eu acabei com os meus personagens, só deixei a Muriel/Hugo, justamente o transgênero. Sem essas amarras de personagem, resolvi trabalhar com um grau de liberdade inédito. Esse modo de trabalhar é semelhante à minha busca pela minha nova identidade. Sou livre.

Comentários

  1. O fato de o artigo afirmar que o rapper Mikky Blanco "trocou de gênero" diz muito sobre a forma de pensar do autor e da mídia de forma geral. Na verdade Mikky Blanco é um rapper que se apresenta hora vestido como homem, hora vestido como mulher, hora no meio termo, hora com duas cabeças (https://www.youtube.com/watch?v=w39Fxx10CEI)... Os papeis de gênero são muito mais deslizantes e indefinidos, enquanto aqui procura-se chegar ao pensamento de que o transgênero de sucesso e de respeito é aquele que mal pode ser identificado como tal! O trecho: "A imagem mostra um casal aparentemente hétero e feliz, mas só quem os conhece saberia dizer que a moça extremamente feminina na foto um dia foi João Gabriel". Desculpa, "aparentemente hétero e feliz"?!?

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  2. Laerte atualmente está numa campanha bem bacana, que fala sobre, entre outras coisas, os preconceitos arraigados na noção machista de gênero masculino. https://www.facebook.com/homenslibertemse?fref=ts

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