Entrevista: Zico Goes e a MTV Brasil



Publicado originalmente no site: http://www.screamyell.com.br/

Julho de 2014

Por Ricardo Bomfim


O último homem a abandonar o barco na MTV Brasil foi o seu diretor de programação, Zico Goes. Ele entrou na emissora em 1991 convidado por amigo Zeca Camargo, e fez história depois que partiu para o departamento de programação, em 1995, trazendo programas como RockGol, Teleguiado, Barraco, além de ter participado ativamente da organização do primeiro Vídeo Music Brasil (VMB).
No último dia no ar do canal, em 30 de setembro de 2013, ele subiu junto com os VJs e funcionários até a antena do edifício Victor Civita, na rua Professor Alfonso Bovero (zona oeste de São Paulo) e chorou ao dar adeus à programação que ajudou a construir. “Nós fizemos com os limões que a vida nos deu uma caipirinha e todo mundo ficou bêbado nesse final”, diz ele sobre a fase final da emissora, já sem preocupações com Ibope ou faturamento.
Seis meses depois, Zico publicou as suas principais histórias na emissora no livro “MTV, Bota Essa p#@% Pra Funcionar!” (título que lembra o chilique de Caetano Veloso com um erro de som no VMB de 2004), lançado pela Panda Books, e que não apenas serve para o Zico encerrar um ciclo pessoal de 20 anos (agora ele está na Conspiração Filmes) como também analisar a trajetória da emissora que ajudou a construir, e que marcou a vida de muita gente.
Na entrevista abaixo, Zico explica o porquê de o canal tocar bandas coloridas, mas não sertanejo (“O Restart tinha um público e uma estética que tinham mais a ver com a MTV do que o Luan Santana o Michel Teló”), conta como era o processo de selecionar VJs (”A gente privilegiava quem não tinha nenhuma indicação, experiência, nada”), fala sobre alguns programas marcantes da emissora e culpa a internet como uma das responsáveis pela derrocada da MTV Brasil. Zico, bota essa  p#@% pra funcionar.
Por que você quis entrar na MTV?
A MTV pra mim sempre foi um sonho. Eu já conhecia a MTV da Europa e dos EUA e queria ser VJ. Quando surgiu no Brasil eu fui lá fazer teste, mas não passei nem na primeira entrevista. Acabei sendo convidado pelo Zeca Camargo para ser tradutor em 1991. Fiquei 21 anos.
Por que o Zeca te chamou?
Ele me chamou porque é meu amigo e precisava de um tradutor (risos).
E qual foi o primeiro programa que você participou da criação na MTV?
Participei de várias criações, mas o que eu mais lembro foi em 1995 quando participei intensamente da criação de VMB, RockGol, Barraco e Teleguiado. Foi um ano muito emblemático.
Como foi sua trajetória lá dentro?
Fui tradutor, depois redator, chefe de reportagem do departamento de jornalismo e só em 1995 é que eu fui para a parte da programação, que tinha mais a ver com grade e formatação de programas. Aí eu fiquei nessa área até o fim.
Como era esse processo de criação dentro da MTV?
Era um pouco anárquico porque nós tínhamos aquilo de querer o processo mais livre possível. A MTV sempre tinha de acolher todas as ideias. De uma ideia de Jerico sempre pode surgir outra e é um pouco um trabalho de criação coletiva. A gente não gostava dessa noção de que uma ideia tinha um pai. Até porque não tinha, era promíscuo, todas as ideias tinham vários pais e várias mães.
Quais ideias deram luz a programas como o Teleguiado e o RockGol?
O Rock Gol é uma ideia da MTV Latin America, que é feita em Miami. Eles fizeram uma série chamada Rock and Goal, que era essencialmente bandas jogando contra bandas, mas eles imprimiam uma coisa mais de palhaçada, mais de humor. O nosso campeonato era mais sério e o humor ficava por conta dos apresentadores. O Barraco a gente se inspirou nesses programas americanos de debate. Já o VMB surgiu da linhagem do Oscar e do VMA. Os programas muitas vezes eram adaptações ou inspirações em outros que já existiam.
Qual era a grande diferença entre a MTV Brasil e as outras MTVs pelo mundo?
Acho que a MTV Brasil era a que mais fazia coisas locais, tinha uma cara muito única e diferente das outras MTVs. Nós não compartilhávamos tantos programas americanos ou ingleses. A MTV Brasil e a MTV Índia foram as que mais traduziram seu espírito para uma cor local.
E isso tem a ver com a parcela acionária que a Abril tinha em relação à Viacom?
No começo a razão era 50 e 50, aí depois ficou 70 a 30, e acabou 100% Abril. A MTV foi ficando cada vez mais livre da influência da MTV gringa e cada vez mais Abril. Mas a Abril nunca influenciou editorialmente na MTV Brasil. Nada. A MTV se sentia uma filha de pais separados que morava sozinha.
Como funcionava a escolha dos VJs?
Eles eram escolhidos de acordo com a personalidade. A gente escolhia a pessoa pelo jeitão dela. E a gente chegava de todos os jeitos. Muitas vezes chegava em baladas, na rua ou por indicação de amigos. Às vezes até dentro da própria MTV, como a Penélope, Soninha e a Sara. Nós recebíamos muito candidatos, mas até privilegiava quem não tinha nenhuma indicação, experiência, nada.
Os VJs podiam dar pitacos na condução do programa? Isso era comum?
Muitas vezes o programa era o VJ, então isso ficava impresso e alguns deles participavam mais ativamente da criação como o Cazé, o Mion, o João Gordo e a Astrid.
E qual foi seu programa favorito da MTV?
Não me faça essa pergunta (risos), é que nem perguntar qual é o meu filho preferido. Eu era particularmente fã dos programas que o Cazé fazia, dos programas do Hermes & Renato w também de todos os do João Gordo. Recentemente, a gente resgatou o deboche com os meninos do “Último Programa do Mundo”. Os acústicos também. É difícil ranquear. E tinha ainda o “Top Top”, que foi o suprassumo da inteligência da MTV, porque era um programa formatado para ter humor e música ao mesmo tempo. Então, para mim, ele era um dos mais bem acabados.
Quando a MTV começou a deixar o espírito anárquico que ela tinha no começo?
O próprio sucesso da MTV foi amarrando ela, porque ela passou a ter obrigação de manter o sucesso, o Ibope e o faturamento. Isso engessou a programação. Você não conseguia ser mais tão ousado. O fracasso veio porque a essência não dava Ibope. Acho que esse processo começou a partir de 2004/2005, com a MTV tendo que ser um canal mais normal. Isso degringolou para que em 2009/2010 se tornasse um canal normal demais. Não tinha mais aquele humor anárquico, nem a música. Tornou-se uma TV mais jovem, porém mais careta.



Vocês sofriam alguma pressão do pessoal da Abril para caso vocês lançassem alguma coisa muito louca no ar?
A única pressão que a gente sofreu da Abril foi em 2012, quando eles pediram que a gente exibisse a série “A Menina Sem Qualidades” em um horário mais tarde porque acharam que era muito forte.
Por que você pensou em escrever “MTV, bota essa p#@% pra funcionar!” e o que acabou ficando de fora?
Escrevi o livro por uma visão muito pessoal, sem contar tudo, até porque não participei de tudo. Escolhi algumas histórias que achei que eram mais emblemáticas da MTV, mas muita coisa ficou de fora, muitas menções a VJs. Eu não queria fazer um compêndio de tudo o que aconteceu, acho que isso ainda tem que ser feito. Esqueci de falar do “Vinte e Poucos Anos”, que foi o primeiro reality show do Brasil, em 2000. Era inspirado num gringo, até porque a MTV gringa foi a primeira TV a ter reality shows. Começou com o “Real World”, que a gente traduziu para “Na Real”. Era sobre uns jovens que moravam na mesma casa, um tipo de Big Brother. No nosso caso, era uma série mais tranquila sobre oito jovens que se reuniam uma vez por semana para trocar ideias e a gente seguia a vida deles durante aquela semana. Aí toda semana tinha um capítulo diferente que mostrava essa realidade. A recepção dele foi muita boa em audiência e Ibope e marcou uma época mesmo.
A MTV Brasil chegou a ter um plano de se expandir para a TV fechada e lançar novos canais como a americana, que tem o VH1, o Comedy Central e a Nickelodeon. Por que esse plano não deu certo?
A MTV Brasil sempre quis lançar novos canais, só que a gente nunca conseguiu. Era uma segmentação da segmentação, mas nunca foi à frente. Os donos da bola não queriam abrir um novo canal no pago e a TV aberta era impossível por ser uma concessão pública. Teria que fazer um novo “business plan” que o dono da bola nunca quis.
E que diferença você viu da MTV do período que você entrou lá para quando acabou?
Em 21 anos mudou muito. A MTV começou muito alternativa e foi incorporando uma cena mais pop, e programas menos alternativos.
Você acha que essa mudança foi necessária?
Claro. Música não dá audiência e a internet fez não fazer mais sentido só passar videoclipe ou só passar música.
Você acha que a internet foi a maior responsável pelo fim da MTV?
A internet mostrou à MTV que o reinado dela como único canal jovem havia acabado. Já havia outros milhões de canais em outra mídia.
E o espaço deixado pela MTV Brasil vai ser suprido de alguma forma por outro canal de TV?
Não. O Canal Brasil é o único que é mais ousado, mas ele nem é necessariamente para o jovem. Não há na televisão brasileira algo como a MTV. É a internet que suplanta essa ousadia, essa diferença e essa musicalidade.
Você acompanhou vários movimentos musicais na década de 1990. Como a MTV acompanhou o “mangue beat”, por exemplo?
A MTV sempre foi um espelho do que acontecia na cena musical. Era um canal que escolhia um viés pop, rock, alternativo em detrimento do samba, do axé, do pagode e do sertanejo. Nada disso tinha vez na MTV. Logo já tínhamos uma visão que era diferente do cenário completo da música no Brasil. E essa cena que a gente mostrava foi mudando ao longo dos anos. A década de 1990 foi muito profícua em movimentos de artistas como Skank, Planet Hemp, Charlie Brown e O Rappa. Os últimos grandes anos das bandas nacionais foram lá. Depois a coisa foi degringolar de vez mesmo. A gente passou a sofrer da escassez das novas bandas. Claro que a cena do Rap também ficou mais proeminente, principalmente no final da MTV – com Criolo e Emicida. Você embarriga e alcança os picos junto com esse ambiente musical.
Como você explica esse espaço que a MTV abriu para o rap e que vocês não deram para estilos como o sertanejo por própria decisão editorial?
A MTV sempre se relacionou com o mundo pop e alternativo. Apesar do rap ser um movimento da periferia, e não necessariamente o “target” da MTV, ele é um movimento que influencia debaixo para cima. Influenciou as classes A e B, que eram o nosso público. Nossa audiência gostava daquilo. O sertanejo sempre foi desprezível para a MTV, e vamos combinar que a qualidade era muito ruim, então a gente tinha a missão de falar: “Isso aqui é muito ruim, a gente não vai passar. Isso aqui é menos pior, então bota na programação”. Você pode argumentar que Luan Santana não é tão pior do que Restart, mas o Restart tinha um público e uma estética que tinham mais a ver com a MTV do que o Luan Santana ou o Michel Teló.
Em 2013, a MTV teve um retorno às suas origens. Você acha que ela teria prosperado se ela não tivesse vindo já com a ameaça de acabar?
Acho que o movimento de resgatar a sacanagem da MTV antiga em 2011 teve apelo. Como já estava definido que era o fim, a gente não teve muito tempo para que esse resgate acontecesse. É uma pena, porque eu acho que ele teria feito a MTV durar mais.
Quando vinha um músico na MTV, enchia a frente do prédio. Quais foram os que trouxeram mais confusão?
Restart, Rebelde, Hanson, todos fizeram barulho. Quando o Chorão morreu houve uma manifestação espontânea de umas 300 pessoas na porta da MTV porque eles olhavam para a MTV como um lugar de culto.
Isso é uma característica meio única da MTV. O que a emissora tinha que fazia com que a relação dela com a audiência fosse diferente das outras?
Acho que a MTV tinha essa espontaneidade, que desglamourizava a TV, tirava essa distância. Era uma coisa mais de igual para igual com o espectador.
Nos tempos que você trabalhou lá, teve algum artista que deu trabalho?
Acho que todos os artistas deram trabalho (risos). No Rock Gol sempre dava briga como o Toni Garrido.
Mas vocês chegaram a receber críticas de artistas com relação à cobertura que vocês davam?
Alguns ficavam insatisfeitos que o videoclipe deles não passava. Tinham alguns que reclamavam quando apareciam nos “Piores Clipes do Mundo”.
Como você descobriu que ia acabar a MTV e como que foi esse fim?
A gente soube que ia acabar no fim de 2012. Nos preparamos durante 3 meses de anarquia, quando a morte já estava decretada, porque a gente tinha um canal para fazer com total liberdade. Foi um clima de consternação, mas tinha o tesão de resgatar tudo, veio o My MTV, o “Último Programa do Mundo”, tudo para terminar com esse tiro no pé. Nós fizemos com os limões que a vida nos deu uma caipirinha e todo mundo ficou bêbado nesse final.

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