A Esperança sem Esperança de True Detective


O pessimismo e as referências filosóficas na série televisiva idealizada por Nic Pizzolatto

Publicado originalmente no site: http://revistacult.uol.com.br/home/2014/08

Agosto de 2014


Duanne Ribeiro


A humanidade é um erro. Mera carne consciente, um excesso da evolução do qual o mundo não pode pagar o preço; o melhor que faríamos seria, deliberadamente, de mãos dadas, ir ao encontro de nossa extinção. Esse pessimismo agressivo está na boca de um dos protagonistas de True Detective, série de mistério da HBO que foi considerada uma das grandes produções audiovisuais de 2014. Criado por Nic Pizzolatto e dirigido por Cary Joji Fukunaga, o seriado enfoca os detetives Martin Hart e Rust Cohle, entre problemas do cotidiano e a investigação de um conjunto de assassinatos com um aspecto ritualístico perturbador. Percorreremos com os personagens o processo de resolução do crime e ao fim notaremos que passamos por uma redenção: aquele pessimismo se mistura a um comprometimento moral sem garantias, uma esperança desesperançosa.
Nos aspectos técnicos — atuação, fotografia, controle da narrativa, etc — os seus oito episódios, que concluem a história (cada temporada terá um mote distinto), são sempre competentes. O texto também se destaca: o diálogo é bem construído e enreda referências filosóficas e literárias — entre outros, Friedrich Nietzsche e H.P. Lovecraft. O quanto a filosofia ou a ética exposta pela série é relevante, isso é disputável; no entanto, como disse Jon Baskin na revista The Point, desconsiderar esse conteúdo como “pretensioso” ou “vazio” é deixar de lado o desafio proposto por ele, abandonar o que pode ter de instigante e, enfim, não ter em mente o que True Detective é ou procura ser. Nesse sentido, qual o melhor modo de abordar o debate de ideias que ocorre na obra de Pizzolatto e Fukunaga? Em geral, o que se faz é partir das menções teóricas do próprio roteiro; mas creio que há um atalho: Max Hokheimer. Nele, também, há uma dialética do sombrio e do luminoso.
Em “El Pesimismo, en nuestro tiempo”, publicado no livro Sociedad en Transición: Estudios de Filosofía Social, Horkheimer faz uma genealogia das ideias pessimistas que desembocam na série em pauta. “A antiguidade já conhecia o pessimismo. No século III antes de Cristo viveu Hegesias, um pensador que considerou o mundo de tal modo que o suicídio lhe parecia uma resposta adequada”. Esse pessimismo radical de Hegesias, nota Horkheimer, nasce próximo à escola epicurista, e formas de pensamento similares se estendem até os dias em que ele escreve (quem sabe possamos dizer também: até os nossos…) — momento em que, pelas condições de desenvolvimento da sociedade, ganha vigor. A maior influência de Horkheimer em tal contexto é Schopenhauer, de quem retira outra descrição vasta do pessimismo: “Já Empédocles, disse o nosso filósofo, ‘compreendeu plenamente a miséria de nossa existência… e o mundo é para ele como para os verdadeiros cristãos, um vale de lágrimas. De maneira similar, Platão, mais tarde, comparava este mundo com uma tenebrosa caverna na qual estaríamos encerrados. Em nossa condição terrena vê ele uma condição de desterro e miséria’”.
Hegesias ecoa no detetive Rust Cohle: “Penso que a atitude honrada para a espécie humana seria negar nossa programação, parar de nos reproduzir, andar de mãos dadas para a extinção, à derradeira meia-noite, irmãos e irmãs pulando fora de um mau negócio”. O personagem também diz, em um diálogo que lembra o trecho final de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”): “A húbris [o excesso de vaidade, ambição] está em arrancar uma alma da não existência para essa carne e forçá-la a viver nessa lixeira. Sim, minha filha me poupou o pecado de ser um pai”. A filha do policial morreu em um acidente, o que colabora para sua personalidade atormentada. Se Cohle postula a inexistência de um sentido, Martin Hart não chega tão longe, porém de mesma forma não acha uma base: “Eu tenho a sensação de ser como o coiote dos desenhos animados, estou correndo fora do despenhadeiro e se eu não olhar para baixo e continuar correndo eu ficarei bem”.
No entanto, esses mesmos personagens desterrados, em miséria, se engajam com violência pelo esclarecimento do mistério, se compadecem, de forma genuína, pelo destino das vítimas. Como esse niilismo mais ou menos intenso se transforma em seu oposto? Na análise de Horkheimer, encontramos uma tensão semelhante. Em “Schopenhauer y la Sociedad”, publicado em Sociologia: “Nenhuma solene atitude linguística para tirar da manga um sentido a partir da falta de sentido e da morte (…) pode confundir-se com o claro tom da obra schopenhaueriana: por muito que sustente como tese principal a inevitabilidade do padecer e da baixeza e sublinhe a inutilidade do protesto, seu estilo constitui um protesto único contra o fato de que seja assim; (…) Se a intransigência com o círculo eterno da desdita se entende como uma vingança sublimada, Schopenhauer era um filósofo vingativo”.
No mesmo livro, “La Actualidad de Schopenhauer” diz: “’Leva uma vida heroica’, é dito nosParerga [Parerga e Paraliponema – Escritos Filosóficos Menores é o último livro de Schopenhauer] — e Nietzsche o citava entusiasmado nas Considerações Extemporâneas — ‘é nobre quem luta com dificuldades desmesuradas pelo que é de algum modo benéfico para todos, e acaba por vencer, mas não recebe por isso recompensa alguma ou muito escassa’. Quanto mais lúcido o pensamento, mais ele se esforça para acabar com a miséria; (…) e os inteligentes não podem deixar de combater os horrores até que desapareçam”.
Ainda mais, a própria filosofia de Horkheimer é informada por esse tipo de visão. “Ser pessimistas teóricos e otimistas práticos”, eis o lema que o filósofo afirma ser seu e de Adorno. O pessimismo da teoria, na sua obra, diagnostica os entraves ao desenvolvimento do indivíduo e um poder crescente dos mecanismos de controle sociais; o otimismo da prática investiga quais fatores podem ser desenvolvidos na trilha de uma maior emancipação — trata-se da “teoria crítica” praticada por ele e por outros pensadores alemães no que se costuma chamar, sem muito rigor, de Escola de Frankfurt. É no campo desse ponto de vista que Horkheimer escreve no já citado “El Pesimismo, en nuestro tiempo”: “Ao pessimismo teórico pode se unir uma prática não otimista que, sem esquecer o mal universal, intenta, apesar de tudo, melhorar o possível”. Essa tentativa surgiria de uma solidariedade entre as pessoas que sentem um “anseio, posto em perigo pelo próprio progresso, comum aos homens que conhecem a miséria do passado, a injustiça do presente e a perspectiva de um futuro carente de sentido espiritual”.
É essa transfiguração do pessimismo a mesma que ocorre em True Detective? Os protagonistas pagam o preço das perdas da chancela profissional e da estabilidade afetiva e se enquadram no rigor do heroísmo desejado por Nietzsche. Mesmo sob a consciência da degradação a que todo seu entorno social está submetido, dão-se a tarefa de erigir uma melhoria mínima. Nesse ponto instável em que a mudança é impossível e em que a mudança pode ser realizada, a série e Horkheimer — no que se refere à sua reelaboração da tradição pessimista — se aproximam.
A última cena do seriado parece tornar essa proximidade clara. No espaço externo de um hospital, Hart conversa com um combalido Cohle sobre as histórias que ele criava, quando mais novo, sobre as estrelas, enquanto observava o céu do Alaska. Cohle enxerga agora que se trata de uma única história, e a “mais velha de todas” — a da luz contra a escuridão. “Para mim”, comenta Hart, “parece que a escuridão ganhou muito mais território”. Ao que o outro responde: “Você está vendo isso errado. No início, só havia sombra. Se você me perguntar, a luz está vencendo”.

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