Telenovelas e Sexualidade: Politicamente Correto e Homofobia

[Texto Publicado Originalmente no site Observatório da Imprensa, por Conrado Mendes]

Fazer crítica diária de TV não deve ser uma tarefa fácil, pois nem sempre há o que se dizer de relevante. O resultado disso é a publicação de um tanto de "gosto disso" ou "não gosto daquilo". Vou dar um exemplo: o blog da colunista de TV de O Globo, Patrícia Kogut, traz diariamente na parte superior da tela uma seção em que ela dá uma nota dez e uma nota zero. Todos os dias, Kogut precisa laurear alguém com uma nota máxima e sancionar outra pessoa com uma avaliação negativa. Em 26/01/2011 ela deu a seguinte nota zero:


Pouco mais de dois meses depois, em 31/03/2011, ela confere ao mesmo ator uma nota dez:


Ninguém questiona o direito que a jornalista tem de opinar. No entanto, fiz questão de selecionar duas cenas de Roni, personagem de Leonardo Miggiorin, de Insensato Coração. A primeira cena foi exibida em 31/01/2011 e a segunda foi ao ar em 26/03/2011, ou seja, referentes à mesma época em que foram dadas as notas zero e dez respectivamente. Em ambas, podemos comprovar que o personagem manteve o mesmo "tom" afetado de sempre. Em outras palavras, as cenas mostram que o ator não mudou sua forma de atuação. Não "gritou" mais nem menos. Ele vem sendo o mesmo Roni desde o começo. Porém, por algum motivo, para Patrícia Kogut, sua nota, milagrosamente, de zero foi a dez.

Imagem e estereótipo

Quero dizer com isso que o zero inicial que o personagem de Miggiorin recebeu provavelmente se deve a um pensamento "politicamente correto" segundo o qual os gays, representados de forma caricata nos anos 1970 e 80, começaram a ser retratados com mais verossimilhança, ou de forma menos "estereotipada", a partir dos anos 90. A Próxima Vítima, de Silvio de Abreu, exibiu em 1995, o romance entre dois homens não afetados, interpretados por André Gonçalves e Lui Mendes. Desde então, essa tem sido a tendência de comportamento dos gays nas telenovelas brasileiras.
Paraíso Tropical, última novela de Gilberto Braga e Ricardo Linhares, exibida em 2007/2008, levou esse estereótipo ao extremo oposto. O casal de gays masculinos, interpretados por Carlos Casagrande e Sérgio Abreu, que de tão viris e cuja troca de afeto era tão asséptica, em nada lembravam um casal – nem gay, nem hétero. Assim, o zero que Patrícia Kogut deu a Miggiorin no começo de Insensato Coração provavelmente se deveu a esse pensamento segundo o qual não é politicamente correto representar gays de modo afetado nas telenovelas. Isso, de acordo com essa visão, seria um retrocesso, comparável a voltar aos anos 1970 ou assistir ao Zorra Total, em que os personagens gays ainda têm o mesmo tratamento que tinham no passado.

Porém, o que talvez a jornalista não tenha percebido é que o estereótipo funciona para os dois casos: o estereótipo do gay afeminado e, por outro lado, o estereótipo do gay masculinizado. Durante os anos 1970 e 80, não se podia conceber essa segunda opção. Nas décadas seguintes, o movimento veio se tornando oposto, isto é, passou-se a condenar a representação do gay afeminado nas telenovelas. Em ambos os casos, são estereótipos em jogo e, cada um, à sua maneira, é redutor, pois condena a diversidade a limitar-se a uma unidade atomizada.

Insensato Coração, ao trazer personagens gays de várias gradações e tons, mostra que a mesma multiplicidade que se vê entre os héteros também é possível entre os gays. Dito de outro modo, Roni, personagem de Miggiorin, não depõe contra a imagem dos gays, pois essa imagem só existe enquanto estereótipo, enquanto categoria cristalizada.

"Homofobia liberal"

Quero tocar num ponto um pouco menos visível, que é a homofobia camuflada de politicamente correto. De uns tempos para cá, o gay passou a ter espaço cativo nas telenovelas. Passou-se a "conceder" um espaço à alteridade, àquilo que é "diferente". Sempre, em cada novela, há "o" personagem gay.

Daniel Borillo, professor de Direito da Universidade de Paris X – Nanterre e autor de Homofobia: história e critica de um preconceito, a que me refiro na citação a seguir, chamaria esse fenômeno de "homofobia liberal", que "preconiza a tolerância para com os homossexuais, mas considera que a heterossexualidade é a única a merecer o reconhecimento da sociedade e, por conseguinte, o único comportamento sexual suscetível de ser institucionalizado".

Comentários

  1. Isso me lembra um artigo que eu li sobre representações - The Smurfette principle, que seria o método como as produções se vendem como diversificas, mesmo contendo apenas 1 membro não hétero, branco e homem.
    http://ohnotheydidnt.livejournal.com/58649396.html
    No caso das telenovelas brasileiras, isso não faz muito sentido na questão de gênero, mas certamente faz sentido quando se pensa nas questões de etnia e sexualidade. O que vejo nas novelas é que muitas vezes esses personagens de minoria servem apenas como comic relief ou uma escada para uma personagem maior, como parece ser o caso acima. E acabam também sendo retrados como outsiders, como seres estranhos em um meio predominantemente hétero e branco.
    O resultado disso é que cabe ao ator/atriz não só a responsabilidade de carregar o peso de uma personagem, como também da representação que está sendo feita de sua própria minoria.

    De outro lado ficam os movimentos sociais que sepre lutaram por mais representação no audiovisual. Se antes eles lutavam pra serem representados, hoje debatem como será esse único personagem. E aí, vale lembrar a discussão em torno da primeira Helena negra do Manoel Carlos. Que vivia em um ambiente rico, com amigas brancas, tendo como seu oposto sua irmã, que justamente era uma representação mais fiel da realidade negra no país.
    Acredito que o debate sobre qual realidade deve ser representada disvirtua a luta, que na minha opinão deve ser de não se contentar com esse principio smurfette.

    ResponderExcluir

Postar um comentário