Série que começa na quarta-feira com usuários iludidos de estarem em documentário é criticada por psiquiatras
Médico de 'Intervenção' defende que o programa é representação social de um problema de saúde pública
Publicado Originalmente em Folha de São Paulo, Ilustrada | ||||
Domingo, 29 de julho de 2012, página B9 |
CLÁUDIA COLLUCCI
ELISANGELA ROXO
DE SÃO PAULO
Os dependentes brasileiros de drogas ganharam seu próprio reality show.
Estreia na quarta, no canal A&E, a série "Intervenção", a versão brasileira de um formato americano.
Controverso, o programa retrata a rotina de um viciado em drogas que desconhece que está num reality show -pensa que participa de um documentário.
Depois de ter todo o drama filmado, ele recebe a oferta de tratamento. Um médico (interventor) propõe internação em uma clínica. O dependente escolhe em frente às câmeras se quer ou não.
Os familiares, antes dele, conversam com o médico, que orienta como devem se comportar na hora do ultimato.
Psiquiatras da área de dependência química criticam a série. "Vi a versão americana e achei um 'Big Brother' horroroso. Lá muitos são famosos e isso atrai audiência", afirma André Malbergier, professor da USP e coordenador do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas.
QUASE FILME?
Krishna Mahon, produtora-executiva de programação e conteúdo do A&E, explica que o formato nos Estados Unidos é chamado de "docu-reality", ou seja, uma mistura de documentário com reality show. "É uma linha muito tênue que separa uma coisa da outra", ela defende.
Para Ana Cecília Marques, psiquiatra da Abead (Associação Brasileira do Estudo do Álcool e Outras Drogas), expor o dependente químico piora o estigma da doença.
Ela diz que o programa mostra um único perfil de paciente (o que chegou ao fundo do poço) e um só modelo de tratamento (a internação).
"Tenho um monte de pacientes que usam crack e que se tratam no consultório. A internação é para uma minoria e deve ser decidida sempre em conjunto com uma equipe multidisciplinar."
Malbergier também questiona se haverá benefício ao paciente. "Os dependentes vão melhorar ou é para os voyeurs sádicos interessados em ver sofrimento humano?"
Outro ponto criticado pelos especialistas são os altos índices de recuperação dos dependentes divulgados pelo programa, "mais de 70%".
"Se alguém no mundo inventar um tratamento de dependência que recupere 70% dos pacientes, merecerá o Prêmio Nobel", diz o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, que coordena a Uniad (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas na Faculdade de Medicina) da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
O psiquiatra Fábio Damasceno, o "interventor" do programa, acha a crítica boa. "Essa porcentagem deve ser apenas sobre os que completaram o processo terapêutico, não a população."
Ele admite que o programa pode ser chocante ou ter um apelo estético sensacionalista. "Mas há milhares de pessoas com problemas semelhantes que não têm representação social", afirma.
Segundo Reinaldo Ayer, professor de bioética e membro do Conselho Regional de Medicina (Cremesp), os médicos que participam do programa também podem ser processados por infração ética por quebra de sigilo.
"É muito grave. O paciente não pode ser enganado. O médico também não pode fazer a revelação pública de um determinado tratamento que o paciente vai receber."
Em 12ª temporada nos EUA, formato original ganhou 2 Emmy
O reality show "Intervention", que deu origem ao brasileiro do canal A&E, está em sua 12ª temporada nos Estados Unidos. Mesmo entre as polêmicas que suscitou por lá, o programa já levou com dois Emmys, o prêmio mais importante da TV americana.
A versão brasileira, produzida pela Panorâmica, tem oito episódios que mostrarão o drama de três mulheres e cinco rapazes, viciados em cocaína, crack e álcool.
A estreia, na quarta, traz o caso de Vanessa, 32, de São Paulo, mãe de quatro filhos e dependente de crack. "Ela é o caso mais extremo que filmamos", diz Mara Lobão, produtora-executiva do programa.
Krishna Mahon, produtora-executiva de programação e conteúdo do A&E, diz que foi difícil encontrar quem topasse gravar no Brasil o reality, um sucesso de audiência dos EUA (a estreia da última temporada foi vista por 1,8 milhão de pessoas).
Até a Panorâmica topar, outras cinco empresas recusaram produzir o formato.
O A&E não divulga os valores, mas a série é a mais cara produzida pelo canal no país. A atração, porém, não cumpre cota de programação nacional da nova lei da TV paga, já que os direitos do formato são americanos.
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