A guerra midiática do escritor Roberto Saviano

 

Livro reúne casos sobre crimes, máfia e esperança apresentados pelo autor de ‘Gomorra’ num polêmico programa da TV italiana

Publicado originalmente em O Globo, Segundo Caderno
Quarta-feira, 24 de outubro de 2012, página 1


RIO - Para uma pessoa que vivia desde 2006 sob ameaça de morte pela máfia italiana e com escolta policial permanente, não parecia muito apropriado mostrar a cara num programa de televisão. Mas o italiano Roberto Saviano deixou de lado a razão e partiu para a guerra: uma guerra midiática contra a máfia, a corrupção e uma certa podridão nas instituições de seu país. Saviano passou um mês na TV, apresentando, em novembro de 2010, o programa de auditório “Vieni via con me”. Foi um sucesso de audiência. E também de polêmicas.
As histórias narradas em “Vieni via con me” (algo como “Venha embora comigo”, em tradução livre) foram reunidas por Saviano num livro lançado este mês no Brasil, pela Companhia das Letras. O título é bem sugestivo quanto ao conteúdo: “A máquina de lama”.
— Eu queria contar o que acontece com aqueles que têm talento, que seguem seu dever e como eles se deparam com os mecanismos de uma máquina de lama — explica Saviano, em entrevista por e-mail. — Fiz isso pela história do juiz antimáfia Giovanni Falcone, morto pela Cosa Nostra em 1992. Ou pelo flagelo do comércio do voto, com a capacidade que as organizações criminosas têm para controlar as eleições. Ou pela emergência dos resíduos tóxicos na região da Campânia.
Para Saviano, o trabalho na TV foi uma continuação de seus anos como jornalista cobrindo a máfia, período que deu origem ao livro “Gomorra” (2006, lançado no Brasil pela Bertrand). Foi por “Gomorra” que ele foi ameaçado de morte e vive escondido até hoje.
— A atenção da mídia desempenha um papel importante na minha segurança. Eu estar em destaque é uma espécia de freio para as organizações criminosas. Elas não têm nenhuma intenção de me tornar mártir e entrar em guerra aberta contra a polícia — diz ele.
As histórias por trás de “Vieni via con me” são quase tão bombásticas quanto seu conteúdo. O programa foi produzido pela Endemol, a mesma empresa que criou o formato do reality show “Big Brother”. Só que a realidade proposta por Saviano era mais abrangente, de interesse de todo um país.
— Nós não pensamos nem por um momento em ser capazes de roubar o público do “Big Brother”. Mas, então, um milagre aconteceu: a nossa audiência acabou por ser absolutamente transversal em termos de classe social, idade e nível de ensino — afirma Saviano.
O mais inusitado de tudo é que, desde 2007, a Endemol é controlada pela Mediaset, uma das empresas do ex-primeiro ministro Silvio Berlusconi. A “máquina de lama” de Saviano poderia ser mais profunda, mas se deparou com a pergunta: como lidar com o “patrão”?
— Berlusconi e o diretor-geral da RAI, quase que diariamente, ligavam para intervir na transmissão, com elogios ou críticas — diz. — A situação era uma piada, mas viver em uma piada pode se tornar insustentável mesmo para aqueles com senso de humor.
Então, mesmo com o sucesso (ou talvez por causa dele), "Vieni via con me" só durou um mês. A TV estatal italiana RAI, onde ele era exibido, cancelou o programa sem dar explicações. Silenciou, assim, uma das vozes mais críticas da Itália hoje. Mas não a calou para sempre. Saviano, agora, preparara um livro para o primeiro semestre do ano que vem, com o título “Zero zero zero”. O tema será o tráfico mundial de cocaína. Sua guerra, pelo visto, ainda não terminou.

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