Irritando o espectador



Publicado originalmente no site: http://www1.folha.uol.com.br/colunas

Domingo, 27 de janeiro de 2013, 03h04

Maurício Stycer


Pegue uma novela que não anda muito bem de audiência e introduza algumas cenas bem absurdas, daquelas que afrontam a inteligência do espectador. A técnica é arriscada porque pode produzir efeito contrário ao esperado, mas, às vezes, funciona.

É o que ocorreu com "Salve Jorge", atração principal da Globo, cuja audiência segue abaixo da meta. Ambientada entre Istambul, a Capadócia e o Rio, a novela de Gloria Perez vinha, desde o início, exigindo um exercício abnegado de "suspensão da descrença", mas nesta semana superou todos os limites --e o Ibope subiu.

A autora, como se sabe, tem um estilo calcado no desdém ao realismo, e orgulha-se dele. Lembre-se de "O Clone" ou "Caminho das Índias", por exemplo. O português é sempre uma língua universal, compreendida tanto numa delegacia de Istambul quanto no mercado de Fez (Marrocos) ou nas ruas de Jaipur (Índia).

Os personagens viajam do Rio para essas cidades e voltam sempre num piscar de olhos, sem se cansar ou sentir o fuso. As visitas aos recantos exóticos servem, simultaneamente, para aulas de caráter turístico-cultural e como cenário para tramas de conteúdo "jornalístico", inspiradas em dramas reais.

Em "Salve Jorge" há dois bons temas em exposição --o tráfico de mulheres e o comércio de bebês. O primeiro, narrado numa tentativa de thriller policial, envolve a heroína e acabou tornando-se a peça de resistência da novela.

Criada no Complexo do Alemão, mãe solteira, independente e batalhadora, Morena largou o namorado, Theo, capitão da cavalaria, para trabalhar em Istambul. Chegando lá, descobriu que fora enganada e se viu obrigada a se prostituir.

A quadrilha mantém a moça quieta à base de ameaças contra seu filho e sua mãe, faxineira na casa de uma delegada de polícia gente finíssima, Helô. De volta ao Rio, junto com uma colega de trabalho, Jéssica, Morena teve inúmeras oportunidades de revelar o seu infortúnio à mãe, à delegada e ao namorado, mas não falou com nenhum deles.

No capítulo de segunda-feira (21), finalmente, Morena resolveu contar tudo para uma mulher que ela mal conhece, justamente a vilã-mor da história, a empresária Lívia Marini.

Em consequência, sua amiga Jéssica é morta por Lívia com um golpe de seringa, subitamente retirada da bolsa. Uma seringa? "E eu saio sem ela para algum lugar? No nosso ramo, a gente não sabe quando vai precisar", explicou a bandidona para uma colega de gangue.

Desolada com a morte, Morena tem uma visão de Jéssica envolta por uma luz dourada e promete à amiga vingá-la de qualquer maneira. Ainda tem cem capítulos para cumprir a promessa.

O público reagiu a essa loucura toda com satisfação. No dia 21, a audiência atingiu seu patamar mais alto, 37 pontos, mas ainda muito inferior ao que se espera de uma trama nesse horário.

Gloria Perez, como se sabe, é discípula de Janete Clair, rainha do melodrama na TV. Certa vez, conta Artur Xexéo no livro "A Usineira de Sonhos", a autora de "Pecado Capital" recomendou ao marido, Dias Gomes, e a Ferreira Gullar, que escreviam uma novela juntos: "Mandem o realismo à merda. O público vai adorar". Gloria Perez captou a mensagem, e segue mandando brasa.

Comentários

  1. Apesar do absurdo, as novelas da Glória Perez tendem a fazer muito sucesso. "O Clone" era totalmente surreal, tinha os árabes se esbaldando no pastel da Dona Jura e dançando pagode, a mocinha da história se apaixona pelo clone do seu amado, o cientista que descobre como se faz um clone (o grande segredo da humanidade) e aí esconde isso de todo mundo, e por aí vai. Mas ainda acho que prefiro as bizarrices da Glória Perez ao "realismo" do Manoel Carlos!

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